No século XX, o trabalho marcou a vida de muitas crianças.

A infância ao serviço do país: entre o trabalho e a escola

O combate ao trabalho infantil ao longo do século XX em Portugal foi um processo lento e complicado. A escolaridade obrigatória foi decisiva para a mudança.

Por Catarina Pimentel Neto*

Acorda rapaz o dia rompe
Através do sono escuro
Abriga o teu corpo de onze anos
Tens que ir trabalhar no duro
No ano passado neste tempo
Ainda andavas tu na escola
Mas a família cresce e tu és rijo
E aqui ninguém pede esmola
Hoje vais ser homem
Por quase nove horas sabes lá das horas
Mas talvez amanhã seja domingo no mundo
E tudo bata certo nem que por um segundo
Fogo-de-artifício se ouviria
Se fosse assim p'ra sempre um dia

Domingo no Mundo, Sérgio Godinho, 1997

No Portugal do século XX – não há muito tempo, portanto – o Trabalho Infantil marcou a vida de parte significativa das crianças. Em vez de estudarem, como hoje, muitas – apesar da tenra idade e do corpo franzino – exerciam atividades laborais (bem duras por vezes) ajudando no sustento da família, como recorda a canção “Domingo no Mundo”, de Sérgio Godinho.

Tendo sido uma realidade ao longo de praticamente todo o século passado, o Trabalho Infantil começou cedo a levantar preocupação. Tal aconteceu logo a partir de 1910, com a Implantação da República. Desde então, o fenómeno foi discutido em debates parlamentares, emitiu-se legislação no sentido de o combater, houve várias abordagens face ao mesmo. No entanto, só durante os anos 80 do século passado houve uma redução significativa do impacto do Trabalho Infantil na sociedade portuguesa. Por que foi preciso esperar tanto?

Para encontrar resposta a esta pergunta, temos que recuar no tempo e sumariar as várias abordagens que foram feitas ao Trabalho Infantil desde esse ano de 1910.

Um caminho sinuoso…

Durante a Primeira República, assumiu-se desde logo que as leis sobre o Trabalho Infantil não eram suficientes e houve uma clara preocupação com o facto de a legislação existente sobre o tema não ser cumprida. A prioridade era, porém, o desenvolvimento do país. E o raciocínio simples: esperava-se que à medida que Portugal se desenvolvesse o Trabalho Infantil deixasse de ser necessário.

Mais tarde durante o Estado Novo, o que se verificou foi uma maior aceitação do Trabalho Infantil. Por um lado, essa aceitação foi direta: defendia-se que, quando realizado em família, o Trabalho Infantil era até uma forma benéfica de formação das crianças. E achava-se que estas eram trabalhadoras ideais aos olhos dos patrões, por serem mais submissas à sua vontade. Já indiretamente, essa aceitação verificou-se ao perpetuar-se a situação de pobreza em que vivia grande parte da população, sob o pretexto de que ser humilde era uma virtude.

Só nos anos finais da ditadura, com uma maior abertura do país ao estrangeiro e com o desenvolvimento do turismo, volta a surgir uma preocupação com o Trabalho Infantil. Esta preocupação não tem, contudo, tanto a ver com a qualidade de vida das crianças. O que preocupa verdadeiramente os governantes são duas coisas: a imagem que a exploração infantil em Portugal poderia passar para o exterior e o impacto negativo que a utilização de crianças como mão-de-obra estava a ter na modernização da agricultura.

A Democracia e uma nova forma de olhar a criança

Com a chegada da Democracia a Portugal, o combate ao Trabalho Infantil ganha novo fôlego. O fenómeno começa a ser encarado como exploração das crianças enquanto mão-de-obra. É reconhecida uma maior gravidade ao Trabalho Infantil, indo ao encontro da preocupação com a garantia do desenvolvimento total da criança, cada vez mais defendida por organizações internacionais. A nova forma de ver a criança e o seu desenvolvimento tem, assim, um forte impacto na vida dos mais novos.

Pela primeira vez, não só se reconhece o problema de as leis não serem cumpridas, como se defende que estas são insuficientes e se deve agir no sentido de alterar a situação.

Assim, apesar de, desde o princípio do século, o sistema governativo ter tido noção dos malefícios do Trabalho Infantil, esta realidade permaneceu com um peso esmagador durante décadas, porquê? Com vimos, por várias razões: dar prioridade ao desenvolvimento económico do país e beneficiar do baixo custo da mão-de-obra infantil, bem como da submissão que esta garantia, são duas das razões. A principal razão para a manutenção desta realidade foi, no entanto, outra: a pobreza, uma constante para grande parte da população. Era esta necessidade de rendimentos familiares que muitas vezes levava crianças a trocar os bancos da escola pelos locais de trabalho.

O que muda então na década de 1980?

Na década de 80 do século passado começa a defender-se o alargamento da escolaridade obrigatória como a melhor forma de se garantir o normal desenvolvimento das crianças (físico, mental, social), por um lado, e de as retirar do meio laboral, por outro.

Esta ideia é acompanhada da noção de que é a pobreza e a degradação social que levam as famílias a recorrerem ao trabalho das crianças. Noção essa que está na origem de propostas de implementação de apoios de transporte, alimentação, abonos e subsídios para os estudantes e suas famílias. No mesmo sentido, de forma a impedir que a ganância patronal se aproveitasse da fragilidade económica das famílias, é discutido o agravar das penas para quem recorre à exploração infantil e criam-se apoios sociais que permitam às famílias viver dignamente, sem recorrerem ao trabalho dos filhos como fonte de rendimento, passando para o Estado esta responsabilidade.

Como consequência destas medidas, observa-se uma clara redução do número de crianças a trabalhar. Sobretudo no grupo daquelas que têm menos de 14 anos.

Escolaridade obrigatória: uma das chaves da mudança

Apesar de os anos 80 do século XX não terem sido uma época em que se tenha legislado especialmente sobre o trabalho, algo feito nos primeiros anos da Democracia, observamos um recuo significativo dos números do Trabalho Infantil. Podemos assim concluir que esta redução se deveu maioritariamente ao alargar e efetivar da frequência da escolaridade obrigatória, que permitiu não só diminuir os números da exploração infantil, mas também garantir um normal desenvolvimento (físico, mental, social) das crianças e atenuar as diferenças sociais nas novas gerações, fruto de uma nova forma de ver a criança e o seu desenvolvimento.

Não obstante a manutenção de muitas destas dinâmicas e as dificuldades sentidas ainda na década de 1980, neste período conseguiram alcançar-se várias vitórias: uma redução mais marcada dos números do Trabalho Infantil, o sucesso da implementação e do alargamento da escolaridade obrigatória e a criação de uma nova forma de viver a infância e juventude, marcada pela aprendizagem e lazer, alargada à maioria da população.

O Ensino teve, portanto, uma força inegável nesta mudança: conseguiu colocar as crianças nas cadeiras das escolas e retirá-las dos postos de trabalho, garantiu a sua formação ao mesmo tempo que contribuiu para interromper os ciclos de pobreza. E, sendo justamente a pobreza a principal causa do Trabalho Infantil, ao combate-la o Ensino reduziu drasticamente o fenómeno do Trabalho Infantil.

Fotos:
1) J. P. Laffonte, in Informations OIT, vol.17, nº5, Dezembro 1981
2) D. Bregnard, in Informations OIT, vol.27, nº5, Dezembro 1991

(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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