Foto: As encostas do Mazouco e alguns dos 56 entrevistados no âmbito da investigação Memórias do Contrabando | Memória para Todos - 2020

Vai dar Raia – Memórias do Contrabando no Douro Superior

O contrabando e as dinâmicas em torno da sua prática compõem a história recente e são elementos muito relevantes na memória das comunidades locais do Douro Superior.

Por Inês Castaño, Inês José, Fernanda Rollo, Luísa Seixas, Mariana Castro, Sofia Diniz e Sofia Pinto* – História, Territórios, Comunidades – CFE-UC, NOVA FCSH

O contrabando e as dinâmicas em torno da sua prática compõem a história recente e são elementos muito relevantes na memória das comunidades locais do Douro Superior.

Ser contrabandista representava quase sempre um meio de sobrevivência, envolvia riscos e exigia determinação, muitas vezes prosseguindo o propósito de melhorar, ainda que pouco, as condições de vida a que as populações locais estavam sujeitas. Os guardas-fiscais integravam-se nessas comunidades, relacionando-se com os seus habitantes, e o seu trabalho também acarretava riscos, obrigando ao bom conhecimento do território e das estratégias de dissimulação dos que se dedicavam ao contrabando.

A investigação Memórias do Contrabando foi desenvolvida no âmbito do projeto Vai dar Raia (1), tendo como propósito recolher, registar e disponibilizar histórias e memórias relacionadas com a temática do contrabando nas regiões da fronteira entre Portugal e Espanha, desde a Guerra Civil de Espanha (1936-1939) até à abertura do mercado único europeu e consequente abolição das fronteiras fiscais e dos controlos aduaneiros (1993).

O principal foco da investigação residiu no propósito de aprofundar o conhecimento sobre a representação e o impacto do contrabando nas comunidades locais, a(s) prática(s) de contrabando e dos contrabandistas, especialmente o papel das mulheres, a caracterização das redes existentes e das relações estabelecidas com as autoridades policiais nos territórios português e espanhol nos concelhos do Douro Superior. Note-se que a maioria dos trabalhos existentes analisam o contrabando em determinadas zonas das sub-regiões do Alto Minho, Alto Tâmega, Beira Baixa, Alto Alentejo, Baixo Alentejo, Algarve e ainda um pouco sobre a região de Riba Côa (concelhos compreendidos entre o rio Côa e o rio Águeda), existindo um vazio na historiografia portuguesa no que diz respeito aos concelhos do Douro Superior (2).

Os resultados dos testemunhos recolhidos e das entrevistas realizadas permitem compreender melhor como se realizava o contrabando no Douro Superior, caracterizar o perfil dos contrabandistas, a profissão de Guarda Fiscal e ainda clarificar as dinâmicas criadas no seio das comunidades locais, entre os diversos concelhos vizinhos, num contexto transfronteiriço.

A história contada por quem a viveu

Foram recolhidos 56 testemunhos, compreendendo a realização de entrevistas e a identificação e digitalização de fotografias e objetos relacionados com as memórias da prática do contrabando. Todos os documentos digitais produzidos (som e imagem) foram organizados e editados e posteriormente validados pelos seus protagonistas para em seguida serem disponibilizados em Memória para Todos.

A par da disponibilização dos conteúdos originais produzidos, procedeu-se ao tratamento dos conteúdos das entrevistas em bases de dados, identificando-se os principais temas e locais referidos pelos entrevistados. A sistematização desta informação permitiu constatar, entre outras coisas, uma maior recorrência de locais junto a linhas de águas do que em zonas de fronteira terrestre (como, por exemplo, Miranda do Douro e Vilar Formoso). De acordo com a distribuição espacial dos topónimos identificados nas entrevistas realizadas e da bibliografia disponível foi possível caracterizar os principais percursos do contrabando realizado ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha, em particular nos distritos de Bragança e da Guarda e nas províncias de Zamora e Salamanca. Para uma clarificação acerca das fronteiras oficiais recorreu-se à leitura do Tratado de Lisboa (1864), no qual estão definidos os limites de fronteira e a distinção entre os locais da raia seca e os da raia húmida, isto é, aqueles que se encontram separados por elementos físicos (como, por exemplo, os marcos fronteiriços) ou por faixas de água (neste caso, por rios).

Os testemunhos recolhidos refletem a presença do contrabando nas dinâmicas e realidades locais e mesmo na sua identidade, reforçando a perceção da sua inscrição na memória, vivência e quotidiano das comunidades fronteiriças. A prática do contrabando está indelevelmente associada às memórias da vida doméstica, às atividades económicas locais, à relação de proximidade estabelecida com as comunidades espanholas e com as figuras de autoridade — a Guarda Fiscal e os Carabineiros/Guardia Civil. Dos contributos recolhidos fica também claro que as motivações que orientam a prática do contrabando (na qual muitos se envolviam ainda na infância) se prendem com a sobrevivência, constituindo-se para muitas famílias como um complemento aos rendimentos domésticos ou, em alguns casos, enquanto única fonte de rendimento. Das características desta prática percebe-se que a fronteira era atravessada individualmente ou em grupo ou ainda que há uma maior representatividade feminina na raia seca face à raia húmida.

Um contrabando moldado pela paisagem

No que diz respeito aos produtos contrabandeados são referidos, com maior recorrência, o café, os ovos, o gado, a amêndoa, o sabão e o azeite (de Portugal para Espanha) e a pana/bombazine, os perfumes, os isqueiros, as alpercatas e as alfaias agrícolas (de Espanha para Portugal). Não se constatam diferenças de relevo de zona para zona, com exceção do gado, mais frequente na raia seca devido a uma maior facilidade de transporte em relação à raia húmida. Todavia, verifica-se que as quantidades poderiam diferir mediante a dificuldade do terreno ou a possível presença de autoridades policiais. As diferenças também se verificaram nos meios de transporte utilizados: na raia seca, os percursos eram realizados a pé, com animais, através de caminho-de-ferro ou de carro e, na raia húmida, a geografia acidentada e a necessidade de transpor a barreira dos rios, criava a necessidade de fazer as travessias a nado, utilizando cordas, sistemas de câmaras de ar ou ainda através de embarcações construídas para aquele fim.

Uma das dimensões mais inovadoras deste estudo para o conhecimento da história do contrabando no contexto geográfico do Douro Superior tem a ver com a atenção dedicada à caracterização dos territórios e das paisagens locais a partir, precisamente, do olhar e da memória dos atores envolvidos na prática do contrabando. É notória a relação entre a prática do contrabando e a paisagem, exercendo esta uma clara influência nas suas dinâmicas, que a moldam e caracterizam. Os percursos identificados resultam, na sua maioria, da topografia característica daqueles territórios — encostas acidentadas, vales acentuados, cursos de água com alterações drásticas dos seus caudais —, mas também das alterações provocadas pelo desenvolvimento económico — os cursos de água que deixam de ser transponíveis a nado ou através de pequenas embarcações improvisadas como consequência da construção de barragens. Somam-se ainda as permanentes mudanças que ocorreram na segunda metade do século XX, como os aproveitamentos hidroelétricos, a partir da década de 1950, a questão da emigração, na década de 1960, que até à abertura das fronteiras marcou de forma profunda as comunidades raianas, numa acentuada transição entre a tradição e a modernidade.

Compreender e conhecer a história do território e das comunidades do Douro Superior através das memórias orais e dos objetos e documentos das pessoas que foram protagonistas ou que recordam estas práticas, é essencial para afirmarmos de que é feita e como é feita a nossa História. Afinal, nestas paisagens, nos rios e nas encostas, estão escondidas — difíceis, mas inesquecíveis — aventuras que através destes testemunhos todos podemos agora conhecer.

Para ouvir e aprender um pouco mais sobre todas estas matérias visitar o site Memória para Todos.

NOTAS:
(1) O projeto Vai dar Raia é promovido pela Associação de Municípios do Douro Superior de fins específicos. A investigação Memórias do Contrabando, integra o referido projeto, sendo desenvolvida pela Associação Keep em colaboração com o programa Memória para Todos@, através do pólo de investigação História, Territórios, Comunidades – CFE-UC, NOVA FCSH.

(2) Com exceção do trabalho desenvolvido por Ana Isabel Afonso, Sendim. Planalto Mirandês. Valores em Mudança no Final do Século XX, Colibri, 2013, que foca a questão do contrabando entre outros assuntos. A recolha de memórias contou com o apoio essencial dos parceiros locais com vista à identificação.

(3) Os protagonistas do território em estudo com interesse em partilhar e registar as suas memórias. Começou-se por identificar a bibliografia geral e específica sobre o tema do contrabando, que serviu de base à preparação do guião de apoio às entrevistas a realizar.

IMAGENS:
Encostas de Mazouco, junto ao rio Douro (fonte: Sofia Diniz, 2020). Imagens dos momentos de registo das entrevistas: Filisbina Rosa Preto Fernandes [Constantim, Miranda do Douro]; João Espinha [Escarigo, Figueira de Castelo Rodrigo]; Ângelo Arribas [Freixiosa, Miranda do Douro] e Carmen Anunciação Pires [Constantim, Miranda do Douro] (fonte: Memória para Todos, 2020).

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH (https://htc.fcsh.unl.pt) e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo

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