Cultivar uma memória abolicionista – o melhor remédio para que não regresse a pena de morte 

Em 2016, pelo menos 1032 pessoas foram executadas em 23 países, sem contar os dados referentes à China, por serem sonegados de forma deliberada pelo poder político desse país. 

Por Luís Farinha* – Diretor do Museu do Aljube Resistência e Liberdade

A maioria das penas de morte terá sido aplicada, em 2016, na China, na Arábia Saudita, no Iraque e no Paquistão. No entanto, afirmar estes dados como definitivos e «científicos» é temerário e até ridículo, se tivermos em conta que o clima de guerra generalizado no Médio Oriente e os conflitos disseminados por todo o mundo configuram cenários ocultos onde são desrespeitados os mais elementares direitos. Desde logo, o direito à vida, consagrado no artigo 3º da Carta de Direitos Humanos e em numerosos protocolos abolicionistas promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e – seja dito – assinados de forma hipócrita pelos mesmos países que depois os desrespeitam de forma despudorada e repetitiva, muitas vezes de forma bárbara e com recurso a sevícias e à tortura: por apedrejamento em praça pública, por enforcamento ou por aplicação de violência continuada. 

No limite, estas formas bárbaras não diferem, no efeito, da «morte limpa» aplicada, por injeção letal ou com cadeira elétrica, em 30 dos 50 Estados dos EUA. Mas acrescentam a multidões em fúria a oportunidade de manifestarem o seu hediondo sadismo, despertando crescentes sentimentos de violência em torno do «cadafalso». 

Ora, se alguma coisa a história do abolicionismo (uma conquista do liberalismo oitocentista avançado) mostrou foi que não só a aplicação da pena de morte constituiu alguma vez um antídoto ao crime violento, como a sua aplicação, de forma bárbara e com tortura, ao contrário de provocar medo e arrependimento, antes alimenta instintos hediondos de mais violência. Foi por isso que, no século XIX, a recomendação de «substituir o ferro à forca, o momento ao quarto de hora e a máquina ao braço humano» já constituía um indicador de civilização e foi seguida como uma estratégia dos abolicionistas. 

De resto, a estratégia gradualista é ainda hoje apontada como vantajosa pela ONU – por exemplo na recomendação que faz para que a pena de morte não seja aplicável a menores de 17 anos – sabendo bem que quase um terço dos países do mundo continua a ser «mortícola» e que é por pequenos passos que se poderá avançar para a consciência (e prática) generalizada do abolicionismo.

Sendo Portugal um país pioneiro na abolição da pena de morte (Carta de Lei de 1 de julho de 1867) vale a pena recomendar a leitura da Reforma das Cadeias em Portugal (1860), da autoria de Ayres de Gouveia, o «bispo vermelho», como ficou conhecido – lente de Leis da Universidade de Coimbra, bispo, deputado, ministro, Par do Reino e maçon.  

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas, Ricardo Castro e Susana Domingues.

Deixa o teu comentário.

O teu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *