A Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços dá a conhecer mais de um século de história industrial
Fica em Corroios, no concelho do Seixal, é património cultural e encontra-se classificada como monumento de interesse público.
Por Graça Filipe (*)
Depois de um ciclo industrial de mais de um século (1896-2002), o processo de patrimonialização da Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços deveu-se ao reconhecimento do seu interesse histórico e do seu potencial museológico.
Conhecer a história do sítio, antes e depois da fábrica, ajuda a compreender as atuais características de Vale de Milhaços, associadas à industrialização da margem esquerda do estuário do Tejo e ao impacto dela resultante, a partir de finais do século XIX.
A produção de pólvoras negras em Vale de Milhaços iniciou-se em 1896, numa instalação industrial com energia a vapor que pouco tempo laborou, pois, em 1897, um grave acidente destruiu as oficinas da firma Francisco Carneiro & Comandita, causando a morte de vários trabalhadores. Reconstruir a fábrica, embora aproveitando parte da estrutura original, implicou uma recapitalização. Foi o que a Companhia Africana de Pólvora S.A.R.L empreendeu em 1898, seguindo os modelos tecnológicos mais avançados da época para o fabrico de pólvoras físicas. Os promotores da moderna fábrica procuraram não só garantir maior segurança, como aumentar a capacidade de produção de pólvoras negras, tendo como principal alvo comercial os mercados coloniais de África.
A par dos modelos e maquinaria importados da Alemanha e da França, há que assinalar um sistema de transmissões de energia mecânica à distância, ligando o edifício central – onde funcionava a caldeira e a máquina a vapor – a outros oito conjuntos de edifícios onde se processavam as principais matérias-primas que compunham a pólvora – o salitre, o carvão e o enxofre.
Instalada em meio rural e envolta por área florestal, a fábrica encontrava-se à beira de vias de circulação importantes para a época e, até meados do século XX, com ligação terrestre a um embarcadouro, na Quinta do Rouxinol, para assegurar a comunicação fluvial com o porto de Lisboa.
As citadas mais-valias tecnológicas não foram porém suficientes para evitar o colapso desta indústria em Vale de Milhaços, nas primeiras décadas do século XX. Com ela, colapsou também a Companhia Africana de Pólvora, face aos constrangimentos relacionados com a produção e o comércio de pólvora e explosivos por privados e com a Primeira Guerra Mundial.
A partir da década de 1920 o industrial Francisco Fernandes Camello participou na aquisição e depois tornou-se proprietário exclusivo da Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços, constituindo a Sociedade Africana de Pólvora Lda (1922-2002). Esta não só recuperou o alvará de produção, como permaneceu no mercado de pólvoras e explosivos até ao início do século XXI, contornando obstáculos de diversa ordem e conseguindo atravessar quadros políticos, económicos e até tecnológicos diversos daqueles em que fora criada a fábrica e se mantivera na Companhia Africana de Pólvora (1898-1920).
Na Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços, a mão-de-obra, em regra não especializada (a exceção era o responsável técnico), representou no máximo pouco mais da centena de trabalhadores. Ao longo de gerações predominou a transmissão familiar de saberes.
Conjuntamente com a fábrica, o bairro operário (1900-2002) determinou outras infraestruturas e dinâmicas sociais que, em parte, ainda se podem ver refletidas na sociedade atual.
Em meados da década de 1990 (e após a perda dos mercados ultramarinos que resultara da descolonização portuguesa), a SAP procurou ainda assegurar alternativas comerciais, submetendo as suas pólvoras negras à certificação e homologação reguladas por directivas comunitárias. Mas uma das razões fundamentais de sobrevivência da fábrica de Vale de Milhaços foi, sem dúvida, a ligação da atividade empresarial dos proprietários – pelo menos a partir da década de 1930, até ao início do século XXI – com outras vertentes da indústria dos explosivos.
Alguns aspetos históricos da Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços aqui aflorados tornaram-se particularmente relevantes para o reconhecimento patrimonial do circuito da pólvora negra, contextualizado nas experiências de industrialização em Portugal e na Europa, nomeadamente ligados a questões tecnológicas, de inovação e de longevidade de aplicação, por exemplo da energia a vapor.
Atualmente, através do processo de musealização inscrito no Ecomuseu Municipal do Seixal, a Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços acolhe iniciativas culturais diversificadas e tem sido objecto de estudos multidisciplinares, como o projeto em curso (2018-2021) intitulado ‘Material culture, scientific culture: industrial heritage for the future (IH4FUTURE)‘.
Ilustrações:
1) Prova fotográfica do acervo do EMS. Fotografia de Arnaldo Garcez, realizada na Fábrica de Pólvora de Vale Milhaços possivelmente na década de 1930, com uma vista da fachada norte da casa da máquina a vapor. © EMS/CDI.
2) Desenho técnico, acervo do EMS. Planta geral da Sociedade Africana da Pólvora, em Vale Milhaços, à escala 1:1000. © EMS/CDI.
(*) Investigadora do IHC-NOVA FCSH; museóloga. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas, Ricardo Castro e Susana Domingues.Graça Filipe.