De São Miguel para colonatos em Angola e Moçambique
Em 1956, muitas famílias de agricultores açorianos viram na migração ultramarina uma forma de fintar a pobreza e conquistar estatuto social.
Por Radija Soares Silva*
Em setembro de 1956, a Câmara Municipal de Ponta Delgada recebeu informação alusiva à abertura das inscrições e seleção de famílias de agricultores que manifestassem interesse em partir para o ultramar, concretamente, para o colonato da Cela e do Cunene, em Angola, e o colonato do Limpopo em Moçambique. Esta tardia migração ultramarina surge na sequência da segunda Guerra Mundial e da alteração da política colonial africana, tendo como principal objetivo impedir uma possível subversão por parte dos nativos, bem como consolidar a presença portuguesa em África, curiosamente, num período onde o movimento anticolonial já estava em curso.
Para o efeito, o decreto-lei n.º 36558, de 28 outubro de 1947, criou a Junta de Emigração que ficou encarregue de operacionalizar a deslocação de emigrantes para os colonatos. Estes colonatos projetados pelo Estado assentaram num modelo rural e branco. Ademais, era proibida a migração de estrangeiros para as colónias sob pena de perda da “identidade nacional” dos territórios e de disseminação do “perigo vermelho” (1). Em termos nacionais esta colonização foi feita, sobretudo, por pessoas vindas de Lisboa, Porto, Viseu e Guarda (2). No caso dos Açores, as duras condições de vida dos agricultores micaelenses e as atrativas condições de emigração traduziram-se num número acentuado de inscrições.
Vontade de afirmação social numa terra distante
Em São Miguel, os constantes pedidos de boletins de inscrição, enviados pelo Governador Civil de Ponta Delgada ao Ministério do Interior, fizeram aclarar as dificuldades enfrentadas pelos lavradores micaelenses, na segunda metade do século XX. Trata-se de famílias que tinham a sua fonte de rendimento numa agricultura de subsistência e dependente do clima e que, por isso, enfrentavam grandes dificuldades no sustento dos filhos (3).
Nos boletins de inscrição enviados ao Governador Civil de Ponta Delgada, estas famílias sublinhavam as suas deploráveis condições económicas traduzidas na constante contração de créditos – as quais, na maioria dos casos, afirmavam não ter possibilidade de os vir poder vir a pagar. Esta carência económica destacou-se igualmente na incapacidade de alguns agricultores em pagar a documentação necessária para o embarque. Significa isto que muitos destes lavradores viram-se obrigados a vender os poucos bens que lhes restavam – mobílias, animais, alfaias agrícolas – para poderem, não só pagar a documentação necessária, mas também, a indumentária com que iam partir (4).
A necessidade de chegarem bem-apresentados ao local de destino associa-se, também, à vontade de afirmação social numa terra distante – algo impossível na sociedade micaelense do século XX – face ao seu baixo nível de instrução, riqueza e prestígio social. A possibilidade de se afirmarem socialmente nos colonatos acaba por estar alinhada igualmente à própria propaganda salazarista em torno da emigração, que destacava o papel civilizador do Estado português em África e a superioridade dos portugueses face aos africanos. Significa isto, que, independentemente da posição que estes lavradores ocupassem na ilha, na sociedade colonial estariam socialmente acima dos nativos (5).
Um casal agrícola à espera
Os benefícios oferecidos pelo Estado português afiguraram-se assaz atrativos. Entre eles o transporte gratuito, o alojamento e as terras destinadas ao cultivo nos colonatos do Ultramar, e, inclusive, seriam pagos o transporte de mobiliário e alfaias agrícolas, se as famílias assim o desejassem (6).
A chegada ao colonato era acompanhada por um casal agrícola (nome dado às terras que os colonos iam trabalhar e explorar) – que englobava uma casa de habitação com três quartos, cozinha, dispensa, instalações sanitárias e terras. Destes agricultores esperava-se que fossem munidos de um conjunto de valores e obediência a uma moral, tais como a obrigatoriedade de dedicação à família, ou à exploração do casal, sendo, inclusive, proibido o exercício de qualquer atividade profissional diferente à da venda de produtos por si produzidos.
Estes atrativos benefícios acatavam um conjunto de condições. Primeiramente, era ao chefe de família – e agricultor – a quem cabia a inscrição, sendo que não poderia ter mais de 60 anos. A colonização de um novo espaço obrigava que estas famílias estivessem saudáveis, impedindo a inscrição de famílias com doenças infectocontagiosas, nomeadamente, lepra, sífilis, tracoma, doenças de coração ou de pele – o que seria fiscalizado pela própria Junta de Emigração. Ainda numa lógica de colonização, os lavradores deveriam possuir, no mínimo, dois filhos varões com idade igual ou superior a 15 anos, que pudessem ajudar o pai no colonato na agricultura (7).
Más condições também nas colónias
Em São Miguel, cerca de 200 famílias inscreveram-se nesta emigração, sendo que 93 destes boletins não preenchiam os requisitos para a migração. Dentro das restantes 107 famílias destacam-se a Ribeira Grande e Ponta Delgada como os concelhos que mais inscrições tiveram (56 e 16, respetivamente) (8).
Não obstante as expectativas, estes colonatos brancos acabariam por falhar nos seus propósitos. Muitas foram as famílias que acabaram por desistir por inadaptação ao clima, mas também porque muitos deles viviam em más condições, obrigando o Estado a repensar o modelo de colonatos e alterando-o, inclusive, na década de 60 para um modelo multirracial (9).
Notas de rodapé
(1) CASTELO, 2009, p. 74.
(2) BARATA, 1965, p. 36.
(3) SOARES e SIMAS, 2021, p. 153.
(4) Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD), Governo Civil de Ponta Delgada, Emigração para o Ultramar, pasta 1171, fl. 20.
(5) PINHO, Filipa, Entrevista realizada em Lisboa, 26 de abril de 2010, à investigadora Claúdia Castelo intitulada “Características da emigração histórica para Angola e Moçambique”. Disponível em: http://observatorioemi-gracao.pt/np4/4707.html
(6) BPARPD, Governo Civil de Ponta Delgada, Emigração para o Ultramar, pasta 1171, fl. 24.
(7) BPARPD, Governo Civil de Ponta Delgada, Emigração para o Ultramar, pasta 1171, fl. 38.
(8) BPARPD, Governo Civil de Ponta Delgada, Emigração para o Ultramar, pasta 1171, fls. 56-79.
(9) CASTELO, 2009, p. 75.
Referências bibliográficas:
BPARPD, Governo Civil de Ponta Delgada, Emigração para o ultramar, pasta 1171.
BARATA, Óscar Soares, Migrações e povoamento, Lisboa, SGL, 1965.
CASTELO, Claúdia, “Migração ultramarina: contradições e constrangimentos”, in Ler História, 56, 2009, pp. 69- 82. https://doi.org/10.4000/lerhistoria.1950.
PINHO, Filipa, Entrevista realizada em Lisboa, 26 de abril de 2010, à investigadora Claúdia Castelo intitulada “Características da emigração histórica para Angola e Moçambique”. Disponível em: http://observatorioemi-gracao.pt/np4/4707.html.
SOARES, Hélio e SIMAS, Joana, “A emigração jorgense para Angola: o caso de S. Jorge do Catófe”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, 2021.
Foto de abertura:
RTP Ensina (retirado de https://ensina.rtp.pt/artigo/o-colonato-do-limpopo/)
(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.