Grande Guerra: como era a alimentação na frente de combate?
Tanto em África, como na Europa, os combatentes portugueses não tiveram a melhor ração de combate. Com os oficiais, era outra história…
Por Margarida Portela*
A alimentação é essencial ao moral dos combatentes – quando é boa, não resolve todos os problemas, mas ajuda; quando é deficitária, provoca queixas generalizadas por parte dos soldados. Como tal, uma boa ração de combate torna-se essencial ao bem-estar de qualquer militar. E, durante a Grande Guerra, a sobrevivência dos soldados portugueses também dependeu do que lhes foi concedido. Porém, os mesmos sentiram – com frequente intensidade – profundas diferenças entre a sua alimentação quotidiana e a forma como foram alimentados nas frentes de batalha, africana e europeia.
Em África, as dificuldades começariam a ser sentidas aquando da chegada dos primeiros contingentes, mobilizados e embarcados para Angola e Moçambique em 1914. Na viagem, alimentos como bacalhau, chouriço ou sardinhas enlatadas foram fornecidos aos combatentes, apesar das quase inexistentes condições de refrigeração. Contudo, quando desembarcaram, sobreveio o choque, dadas as dificuldades logísticas e o clima quente das colónias.
Os alimentos escolhidos nem sempre foram os mais apropriados… Quando existiam! Uma vez que não se detinham boas vias de comunicação para reabastecimentos. Paralelamente, a vastidão dos territórios implicava marchas extenuantes, com os soldados inapropriadamente vestidos e alimentados. A água potável era frequentemente inacessível, diminuindo assim a resistência dos militares a outros fatores de perigo, caso das doenças, humidade e animais selvagens. No final, as condições sanitárias das tropas foram, quase sempre, lamentáveis.
Fome, disenteria e problemas gástricos
Particularmente em Moçambique – frente de combate que se prolongou até 1918 – muitos dos produtos consumidos pelos militares portugueses eram transportados por carregadores**, como por exemplo grão, feijão, ervilha seca, arroz, macarrão, bacalhau, açúcar, batata, milho, entre outros. Serviam os mesmos para alimentar o combatente nacional, deixando aos carregadores o ónus de providenciar pela sua própria subsistência. Ainda assim, a sobrevivência do soldado português estava, também ela, frequentemente em perigo. A má qualidade dos produtos imperava, e os revendedores roubavam no seu peso, inflacionando os preços. E as graves deficiências no sistema de angariação e distribuição alimentar provocaram problemas de saúde de grande severidade, com os soldados frequentemente debilitados pela fome, disenteria e outros problemas gástricos, fulcrais na propagação do escorbuto, tuberculose e malária.
Na frente europeia subsistiram igualmente problemas logísticos, mas em proporções diferentes, e com impactos distintos no moral dos combatentes. Ao contrário da Frente Africana, em França não houve fome, nem imperou a sede, mas, dependendo dos contextos, foi igualmente difícil alimentar os combatentes. Tal era particularmente notório durante as estadias no front, ou seja, nas trincheiras, situadas na frente de combate. O que restava aos combatentes que, dormindo pouco, viviam em perigo constante? Rações frias, ou, quando possível, alguma refeição quente, parcamente elaborada, proveniente da cozinha de campanha mais próxima.
Uma ementa inglesa… pouco apreciada
A subsistência alimentar dos membros do Corpo Expedicionário Português (CEP) era maioritariamente da competência dos Ingleses, e foi ratificada num convénio assinado entre os aliados a 3 de Janeiro de 1917. Desta forma, competia às forças britânicas fornecer uma ração constituída por pão, carne, doce, queijo, açúcar, sal, pimenta, mostarda, leite condensado, legumes verdes, batatas, manteiga, pickles, rum, tabaco e fósforos. A carne podia ser substituída por corneed beef (carne enlatada ou salgada), e o pão, por bolacha. Portugal providenciava a substituição do chá por café, e o fornecimento do tão amado vinho português.
As queixas eram frequentes, relativas à composição, quantidade e qualidade dos ingredientes. O “gosto britânico” não era o mesmo do português. Os soldados do CEP odiavam a comida dos “beef” (alcunha dada aos ingleses, com origem –pensa-se – no facto de os primeiros guardas da Torre de Londres serem designados por ‘beefeaters’).
Pork and Beans e Pork and Cheese: as alcunhas dadas aos portugueses
Quanto aos Britânicos, eram críticos acérrimos da alimentação dos militares portugueses, a quem chamavam Pork and Beans, devido ao gosto nacional por carne de porco e feijão. Ou Pork and Cheese, vocábulos foneticamente similares a Portuguese, e que tinham em conta o visível amor pátrio dos nossos expedicionários pelo queijo.
Na linha da frente, quando existiam rações quentes, provinham das cozinhas de campanha, pequenas, mimetizadas junto às trincheiras, e com parcas condições de higiene. Face às condições precárias de vivência no front – bem como à falta de higiene que ali imperava – os combatentes podiam contar com a existência de diversos tipos de pragas, que iam das moscas às pulgas, passando pelos ratos, verdadeiros predadores, capazes de comer qualquer coisa que encontrassem.
Na retaguarda a alimentação era mais rica e variada, especialmente para os oficiais, que comiam em messes próprias ou em casas particulares. E que adquiriam artigos, portugueses e estrangeiros, tendo acesso às cantinas dos próprios Ingleses. Além disso, recebiam artigos provenientes de Portugal, enviados pelas suas famílias, mais abastadas que as famílias das praças do CEP. Desta forma, a alimentação era somente mais um dos elementos que acentuava as dicotomias existentes entre superiores e subalternos, contribuindo para exaltar os ânimos, e minar o moral dos próprios combatentes.
Fotos:
1) Uma refeição fria | Hemeroteca Digital
2) Pão e queijo | Hemeroteca Digital
(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.
(**) Os carregadores eram africanos pertencentes às comunidades locais, “recrutados” de forma “voluntária” para servirem no exército português como transportadores de carga, visto que conheciam o território e era habitual executarem viagens e carregarem cargas entre comunidades. Contudo, o seu trabalho real era muito mais extenuante e a sua participação nas missões não era, de todo, voluntária, sendo frequentemente compulsiva. Sofriam abusos diversos, de fome e sede, eram por vezes abandonados se doentes, fugiam, enlouqueciam, embrenhavam-se no mato, eram comidos por leões ou simplesmente executados como espiões quando se considerava que poderiam ter passado mensagens para o lado alemão, razão pela qual fugiam e chegaram mesmo a unir-se ao inimigo, contra os seus anteriores senhores. Só não eram escravos no nome, eram trabalhadores braçais obrigados a um trabalho que ia frequentemente além das suas capacidades físicas e mentais.