Guia para entender o processo de paz na Colômbia
O que são as FARC e como surgiram? Em que consiste o acordo entre as FARC e o Governo? O que falta fazer?
(ARTIGO ATUALIZADO A 7 DE OUTUBRO DE 2016)
Na Colômbia, há paz à vista depois de mais de 50 anos de guerra. O conflito colombiano é um daqueles conflitos, como o israelo-palestiniano, que parecia não ter fim. De um lado, o governo colombiano, do outro, as FARC, ou seja, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Pelo meio, muita violência.
Agora, após quatro anos de negociações, o governo colombiano e as FARC assinaram finalmente um acordo de paz.
As duas partes combateram durante mais de meio século, numa guerra que deixa marcas profundas no país: 220 mil pessoas morreram, 30 mil foram sequestradas, 160 mil estão, até hoje, dadas como desaparecidas. O número daqueles que foram obrigados a abandonar as suas casas devido à violência é maior ainda: na casa dos seis milhões.
O QUE SÃO AS FARC E QUANDO NASCERAM?
As ‘Fuerzas Armadas Revolucionárias de Colombia’ surgiram em maio de 1964, embora as suas raízes se encontrem alguns anos antes. Talvez em 1948, quando um nome incontornável da história da Colômbia, o líder do Partido Liberal colombiano, Jorge Gaitán, foi assassinado em Bogotá, a capital do país.
A Colômbia vivia há vários anos numa disputa acesa pelo poder entre os dois principais partidos – conservadores e liberais. Muitos historiadores defendem que o país vivia já num clima de guerra civil -, e registava-se já então, como hoje, um grande fosso entre ricos e pobres (a Colômbia está entre os países com maior desigualdade do mundo e com uma elevadíssima taxa de pobreza).
A morte de Gaitán, um político de esquerda, muito querido das classes trabalhadoras, dos camponeses, conhecido por “caudillo del pueblo” (algo como “chefe do povo”, em português) contribuiu para acentuar as diferenças entre os dois principais partidos colombianos e para um aumento da violência.
O assassinato de Gaitán foi atribuído aos conservadores, que então estavam no poder e temiam a vitória do “caudillo del pueblo” nas eleições que se realizariam dentro de dois anos.
A morte do líder liberal deu origem a um episódio histórico: “El Bogotazo“. Devido ao assassinato de Gaitán, na capital e um pouco por todo o país, houve uma revolta popular contra o governo conservador, originando violentos confrontos.
Depois do ‘Bogotazo’, vários líderes rurais do Partido Liberal, começaram a formar guerrilhas para lutar pelos ideais que defendiam (e de que Gaitán era um símbolo) e contra o governo do país, que os perseguia.
Alguns destes homens formaram uma República isolada dentro da Colômbia, a “República de Marquetalia”, com um regime marxista-leninista. Em 1964, o Governo colombiano tentou liquidar esta comunidade, mas alguns guerrilheiros conseguiram escapar e seriam eles a fundar, oficialmente, as FARC.
O grupo rebelde que se autodenominou como FARC-EP (de Exército do Povo) lutou pelos direitos dos mais desfavorecidos, dos mais pobres. No entanto, a forma de atuação do grupo (com cerca de sete mil membros) revestia-se de uma enorme violência, fazendo ataques de surpresa, levando a cabo sequestros (como o da candidata presidencial Ingrid Betancourt), envolvendo-se em atividades ilícitas – a produção de drogas e o narcotráfico é uma das principais formas de financiamento dos atores não-estatais do conflito armado.
A resposta do lado das forças governamentais colombianas foi igualmente violenta.
A COLÔMBIA É UMA DEMOCRACIA?
Em teoria sim, mas a prática e as estatísticas mostram que o país tem vivido uma democracia precária.
A Colômbia regista elevados índices de corrupção. Entre 167 países, ocupa o lugar número 83 no ranking mundial de perceção da corrupção de 2016 (Portugal está no 28º).
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No Índice de Paz Global que mede o nível de paz e o índice de violência, o país da América Latina também não fica nada bem na fotografia: 147ª posição, ou seja, é um dos mais perigosos países do mundo (Portugal surge em 5º).
Digamos que a Colômbia vive há anos uma grave crise democrática, com os cidadãos a não confiarem nas instituições que os representam e a suspeitarem de acordos entre políticos e máfias.
Perante este contexto, o acordo de paz assinado surge quase como uma possibilidade de refundar o país.
ESTE É O PRIMEIRO ACORDO DE PAZ ENTRE O GOVERNO E AS FARC?
A resposta é não. Ao longo das últimas décadas houve outras tentativas que falharam. O documento agora assinado por ambas as partes na capital cubana, Havana, e que foi negociado ao longo dos últimos quatro anos, fala de um “acordo final, integral e definitivo” com vista a “uma paz estável e duradoura” na Colômbia.
Entre os pontos principais do acordo estão:
– O cessar-fogo bilateral e definitivo;
– A conversão das FARC em partido ou movimento político (apenas depois da entrega das armas pelos guerrilheiros);
– A reforma do regime eleitoral colombiano, dando maiores garantias aos partidos da oposição e a pequenas forças políticas de poderem participar nas eleições, por exemplo através da criação de um Tribunal Nacional de Garantias Eleitorais;
– A promoção de uma cultura democrática de paz;
– A criação de um plano que permita a reintegração dos guerrilheiros na vida civil;
– A criação de um programa nacional de substituição de cultivos ilícitos com planos de desenvolvimento económicos e sociais;
– A melhoria da atenção médica e social dos consumidores de estupefacientes, que deixarão de ser perseguidos judicialmente;
Estabeleceu-se, ainda, que os pontos acordados entre as partes serão acompanhados por várias entidades internacionais, que assegurarão o seu cumprimento.
O QUE FALTA FAZER PARA QUE O ACORDO DE PAZ SEJA UMA REALIDADE?
O acordo de paz não é unânime, isto é, há alguns setores colombianos que se opõem a ele. O o ex-presidente Álvaro Uribe já se veio manifestar contra o acordo. Além disso, as FARC não são a única guerrilha colombiana e há outras que não mostraram abertura para entregar as armas e negociar a paz.
O atual Presidente colombiano, Juan Manuel Santos, sempre disse que a última palavra seria do povo. E, como tal, no próximo dia 2 de outubro, os colombianos irão às urnas manifestar-se sobre o acordado.
Deverão responder “sim” ou “não” à seguinte pergunta: “Apoia o acordo final para por fim ao conflito e construir uma paz estável e duradoura?”.
Falta pouco para saber o que verdadeiramente pensam os 48,7 milhões de colombianos sobre o tão esperado acordo, a cuja comunicação assistiram em praças, na capital do país, através de ecrãs gigantes, como quem assiste a um importante jogo de futebol. E celebraram, agitando bandeiras do país e lançando balões.
As sondagens apontam para uma vitória do “Sim”. Será desta que a paz chega à Colômbia?
O REFERENDO
A população colombiana votou “não” ao acordo de paz assinado pelo Governo e as FARC. A vitória foi, no entanto, mínima. 50,21% votaram “não”, contra 49,78% que votaram “sim”. A taxa de abstenção foi muito elevada. Situou-se nos 63% o que significa que apenas 37% dos eleitores foram às urnas.
Perante os resultados do referendo, tanto o Presidente Juan Manuel Santos, como Rodrigo Londoño Echeverri (que representou as FARC nas negociações de paz), garantiram não desistir do processo de paz. “Lutarei pela paz até ao último dia da minha presidência”, disse o Presidente, enquanto o representante das FARC reiterou que o movimento quer “usar apenas as palavras como arma de construção para o futuro”.
O PRÉMIO NOBEL DA PAZ PARA O PRESIDENTE JUAN MANUEL SANTOS
No dia 7 de outubro de 2016, o Comité Norueguês do Nobel, decidiu distinguir o presidente colombiano Juan Manuel Santos com o Nobel da Paz “pelos seus esforços para terminar com uma guerra civil que conta com mais de 50 anos”. O Comité acrescentou, ainda, que o prémio “deve ser visto como um tributo aos colombianos” que não perderam a esperança na paz, a” todos as partes que contribuíram para o processo de paz” e, ainda, ao incontável número de vítimas da guerra civil na Colômbia.
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Juan Manuel Santos já comunicou publicamente que iria receber o prémio em nome do povo colombiano e que o entendia como uma mensagem de incentivo à perseverança para alcançar a “meta definitiva”, ou seja, “a paz para todos os colombianos”.