O contrabando de guerra em Elvas: entre fronteiras visíveis e invisíveis
No decorrer da Primeira Grande Guerra Mundial, o contrabando preocupou os países aliados. Em Portugal foi uma realidade ao longo de toda a fronteira, principalmente no concelho de Elvas.
Por Mariana Castro (mariana.c_15@hotmail.com) – Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (*)
Definido como uma atividade comercial ilícita, o contrabando surge, a partir do século XIX, nos debates parlamentares dos Estados europeus e nas discussões das Conferências em Haia (1899 e 1907) e Londres (1908-09).
Anos mais tarde, com o eclodir da Grande Guerra, tornou-se uma das preocupações dos países aliados. Entre 1914 e 1918, o contrabando ultrapassou todas as fronteiras visíveis e invisíveis entre estados, países, comunidades e regiões.
No contexto português, foi uma realidade permanente ao longo da fronteira luso-espanhola, principalmente no concelho de Elvas, com dinâmicas de repressão e resistência, sobre as quais te vamos falar em seguida.
No século XIX, com a criação do corpo da Guarda Fiscal, estas fugas às leis tributárias começaram a ser controladas, vigiadas e reprimidas. Foi durante o período correspondente a 1880-1890, que o estabelecimento e organização deste corpo fiscal possibilitou uma maior eficácia no serviço de captura de mercadorias e de agentes ou indivíduos que cometiam comércio clandestino.
A partir da Primeira Guerra Mundial, a Companhia da Guarda Fiscal de Elvas e a Secção de Caia registaram cerca de 318 autos de apreensão (sem contar os casos que não foram registados).
De acordo com os dados recolhidos pelo corpo policial, entre 1915 e 1917, constatou-se o maior número de apreensões. Entre 1916 e 1917, verifica-se uma ligeira subida e, posteriormente, um decréscimo acentuado até 1918.
Nas vésperas da Grande Guerra, eram apreendidos por direitos de descaminho ou por contrabando os seguintes bens de primeira necessidade: pão, tomate, cabeças de gado, café, entre outros.
Os contrabandistas agiam mediante as dificuldades que vivenciavam no seu quotidiano, transitando entre Elvas-Espanha ou vice-versa, com o propósito de venderem os produtos a preços altos e daí obterem maior lucro.
Em 1915, de acordo com o aumento do contrabando na região elvense, uma circular enviada pela 7ª Companhia da Circunscrição do Sul da Guarda Fiscal ao Comandante da Secção fiscal de Elvas, anunciava o seguinte: “tendo este comando conhecimento que a exportação clandestina para Hespanha de gados, víveres e combustíveis, se esta fazendo em grande escala, acarretando assim grandes prejuízos para a vida económica do Paiz (…)”. As medidas a tomar para impedir esta realidade seriam a intensificação da vigilância e repressão junto à fronteira.
Todavia, se no ano de 1915 já havia indícios que o comércio ilícito iria aumentar, a partir de 1916, o contrabando começa a ter maior impacto na vida quotidiana da população elvense. Perante estas situações, no mês de Julho, o Comandante da Companhia da Guarda Fiscal de Elvas reclamava “(…) uma rigorosa fiscalização de modo a ser evitada a saída de cereas para Espanha.”.
No ano seguinte, a Companhia da Guarda Fiscal de Elvas e da Secção de Caia registariam diversos casos de contrabando de ovos, queijo, gado, carne/pescado, tabaco, entre outros.
A título de exemplo, segundo um ofício do Governador Civil de Portalegre para o administrador do concelho de Elvas, muitos indivíduos espanhóis entravam no território português, sem passaporte, para contrabandear gado vacum e lanígero. No término da guerra, o contrabando de gado e outros produtos (por exemplo, ovos, queijo e açúcar) continuaria a prejudicar a economia local e o quotidiano da população.
Em suma, o contrabando de guerra em Elvas teve um grande impacto ao nível das dificuldades sentidas no seio da população. No entanto, estas práticas de comércio ilícito abrandariam no término da Grande Guerra, talvez devido à maior fiscalização exercida pela Guarda Fiscal e auxílio das autoridades locais.
O impacto da guerra não teve proporções tão grandes na região raiana como no resto do território português, apresentando um quadro severo de escassez no pós-guerra. Ainda assim a região sofreu bastante com o contexto de guerra a partir de 1916/17, devido à funcionalidade dos diversos órgãos locais e o auxílio das autoridades locais no sentido de resolver os grandes problemas decorrentes da conjuntura de guerra, ou seja, a crise das subsistências e o contrabando e açambarcamento de mercadorias.
Quadro das mercadorias apreendidas, pela Companhia da Guarda Fiscal de Elvas e Secção de Caia, no concelho de Elvas. Arquivo Histórico da Guarda Nacional Republicana, Autos do Contencioso Fiscal instaurados pela Companhia da Guarda Fiscal de Elvas e Secção de Caia, 1914-1918.
FOTO: Arquivo Municipal de Elvas, Panorâmicas da Cidade de Elvas, Fotografia do edifício da Secção da Guarda Fiscal de Caia (1926). FONTES: Arquivo Distrital de Portalegre; Arquivo Histórico da Guarda Nacional Republicana; Arquivo Municipal de Elvas. BIBLIOGRAFIA: ESTEVES, Álvaro Proença, Missões históricas e Actuais da Guarda Fiscal, 1º Centenário da Guarda Fiscal 1885-1985, Lisboa, Edição Comemorativa, 1985; KENNEDY, Greg, “Intelligence and the blockade, 1914-1917: A study in administration, friction and command” in Intelligence and National Security, 22:5, 2007, pp.699-721; OSBORNE, Eric W., Britain´s Economic Blockade of Germany 1914-1919, London and New York, Frank Cass, 2004; SANTOS, Pedro Ribeiro, Génese e Estrutura da Guarda Fiscal, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985; SENA, Arlindo, “A fronteira do Caia: um espaço aberto e integrador nas vivências transfronteiriças (1850-1910)” in Elvas Caia: Revista Internacional da Cultura e Ciência da Câmara Municipal de Elvas, nº3, Lisboa, Colibri, 2005, pp.113-133; SENA, Arlindo, “Notas históricas sobre a Primeira República em Elvas” in Elvas Caia: Revista Internacional da Cultura e Ciência da Câmara Municipal de Elvas, nº7, Lisboa, pp.135-147; SENA, Arlindo, “La práctica del contrabando en la raya del distrito de Portalegre (1850-1930)” in Revista de Estudios Extremeños, 2010, Tomo LXVI, Número I, pp.287-308.
(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas e Ricardo Castro.