Quem disse que fazer ditados era coisa de criança?
Em algumas cidades francesas há bares que organizam “La Dictée”. E são vários os adultos (e jovens adultos) interessados.
Por Nicolas Romain-Cognard
Todos os domingos às oito da noite no bar ‘Le Péry’, em Toulouse (França), algumas dezenas de pessoas sentam-se nas mesas do bar como quem regressa aos assentos da escola primária (eu sou uma delas!).
Não trazem mochila, nem caderno. Têm geralmente um copo ou um aperitivo ao lado, mas vêm para fazer algo que faziam quando eram crianças: escrever um ditado.
Quando chegam ainda é dia, mas deixam o bar já depois de a noite ter caído na cidade. Os perfis são muito variados… Há grupos de amigos, às vezes membros da mesma família que vêm juntos, mas também pessoas que chegam sozinhas e aproveitam a noite de ditado neste bar para socializar.
As idades? Muito raramente há adolescentes. Mas há de jovens adultos a reformados. A maioria está, talvez, na faixa entre os 25 e os 35 anos.
Nem todos são franceses. Há muitos franceses que desejam colocar questões e saber mais sobre a língua francesa ou, simplesmente, jogar e participar nesta competição. Mas também há estrangeiros – italianos, sérvios, alemães, indianos, por exemplo (Toulouse é uma cidade muito cosmopolita) – que querem aperfeiçoar o seu francês. E, sim, há clientes do bar que estão ali só para beber um copo e acabam por participar também.
Os procedimentos são iguais todos os domingos. Irina Mazuet, que neste contexto assume o papel de professora, distribui canetas e folhas de linhas (iguais às que se usam na escola em França) aos presentes. Em seguida, apresenta rapidamente o livro de onde vai fazer o ditado e o seu autor.
O ditado começa então e avança ao ritmo de escrita dos presentes. Irina vai repetindo partes de frases, marcando a pontuação e soletrando os nomes próprios (os erros nos nomes próprios não são tidos em consideração, pois não há regras para escrever nomes próprios em francês).
Arnaud Peyron, o dono do bar, vê a atividade desenrolar-se com agrado. “É importante trazer a cultura de volta para os bares”, comenta. Se as pessoas escrevem ao som da voz de Irina, é porque um dos ‘barmen’ deste bar sugeriu a “Monsieur Peyron” esta ideia, que já sabia realizar-se em Paris. O mesmo ‘barman’ conhecia Irina e assim começou uma tradição (já se poderá chamar assim uma vez que já acontece há alguns meses?).
Entretanto, Irina anuncia o “ponto final”. Mas o ditado ainda não acabou. Irina volta a ler o texto para permitir a correção de alguma imprecisão e dar tempo para que todos possam voltar a ler o que fizeram. Só depois pega nas folhas de cada um e corrige (às vezes, leva mais de uma hora a fazê-lo, depende sempre do número de participantes). Entretanto, estes descansam. Aproveitam para comer qualquer coisa e matar a sede.
Chega então o momento de Irina devolver os ditados com notas de dez a 20. Se alguém tiver menos de 10, Irina substitui a nota por ‘smileys’ de incentivo.
Segue-se um momento de aprendizagem. Irina explica os erros cometidos pelos participantes. Às vezes, alguns erros geram um debate interessante (as regras de francês nem sempre são claras). A lição não se esgota ali. A “professora” incentiva sempre os participantes a visitarem o site https://www.projet-voltaire.fr/presentation/, a mais completa ferramenta online sobre a língua francesa (tem também aplicações lúdicas para fomentar a aprendizagem).
Por fim, Irina anuncia o nome do vencedor.
A “Dictée récréative” deste bar é realizada em parceria com uma livraria, a ‘Floury Fréres, que todas as semanas fornece o livro do ditado e, no final, esse mesmo livro e um ‘cocktail’ são oferecidos a quem tiver feito o melhor trabalho.
Irina é estudante de mestrado na universidade Jean Jaurès de Toulose, onde está a tirar uma especialização em “Escrita e Criação Literária”. É uma apaixonada pela língua francesa e sua história. O querer partilhar esta paixão com mais pessoas, e ajudá-las a descobrir escritores de diferentes estilos, levou-a a organizar estes encontros em Toulouse.
Num mundo em que escrevemos quase só ‘emails’ e mensagens de texto, agrada-lhe a ideia de estimular a escrita à mão e sem corretores ortográficos para, como diz “reativar a delicadeza dos reflexos da escrita” e a aplicação das regras de francês. Num instante de nostalgia, Irina acrescenta ainda “espero reconciliar os adultos com os ditados da escola”.
Hoje vesti a pele de “enviado especial” do Jornalíssimo, mas sou um fã da “Dictée du Péry”. Quando um amigo me propôs virmos fazer o ditado aqui pela primeira vez, achei a ideia bizarra, mas fiquei logo convencido.
Hoje tento não faltar. Por um lado, gosto de colocar-me questões sobre a minha própria língua e reaprender coisas que entretanto tinha esquecido. Por outro, é uma oportunidade de sair e conhecer pessoas com interesses intelectuais, pelo menos em parte semelhantes aos meus. Já fiz amigos aqui.
Confesso que quando era criança não gostava muito de ditados (não tinha lá muito boas notas). Mas já gostava e continuo a gostar muito de escrever. Sem a pressão das notas, gosto de vir, de ser corrigido e de poder aperfeiçoar.
Em França temos uma grande tradição de ditado para adultos, com “la Dictée de Bernard Pivot“, que passava na televisão e deu muito que falar.
Aqui, aprendo sempre algo novo e, muitas vezes, chego a casa e verifico as dificuldades que tive nos dicionários. Saber coisas novas e aprender com os erros permite sentirmo-nos bem. E quando isto vem acompanhado de um momento social agradável e lúdico ainda melhor.