No bairro operário de Portimão conservam-se memórias de tempos difíceis

Contam histórias as ruas deste bairro construído no início do Estado Novo para albergar operários da indústria de conservas.

Por Francisco Henriques*

Quando se estuda o século XX, a distinção entre História e Memória é pouco clara. Para compreendermos o passado devemos escutar as memórias dos indivíduos, visitar o terreno e observar as permanências de outras épocas.

O bairro operário de Portimão é um desses locais com história. Foi construído em 1936, durante os primeiros anos do Estado Novo, num período delicado em que se viviam as tensões da Guerra Civil de Espanha.

As pequenas casas do bairro, de aspecto singelo, iriam alojar as famílias dos operários da indústria de conservas. No início dos anos trinta, as latas de conservas de peixe eram uma das principais exportações portuguesas. Portimão, Olhão e Setúbal tinham crescido em redor das fábricas conserveiras e da pesca de sardinha.

Aspeto atual de uma das casas do bairro operário. Foto do autor.

Dois anos antes, em 1934, os operários de Portimão aderiram à célebre greve geral de 18 de Janeiro. A greve contestou a publicação do Estatuto do Trabalho Nacional que, em conjunto com a nova Constituição de 1933, determinava o fim do sindicalismo livre. Além da greve – que foi duramente reprimida – os operários sofriam com outros problemas, como a queda de preços das conservas no estrangeiro e a introdução de máquinas que substituíam o trabalho manual nas fábricas. A fome, a penúria das condições de habitação e higiene faziam parte do quotidiano de Portimão.

Com a construção de casas económicas e a atribuição de subsídios aos operários, entre outras medidas, o Estado Novo queria demonstrar alguma preocupação social com as populações mais desfavorecidas. Mas essas ações tiveram como contrapartida a proibição das associações de operários, a censura prévia dos seus jornais, a repressão e a prisão dos elementos mais contestatários da nova ordem política. 

Entre o bairro operário e o cais por onde se descarregava a sardinha, encontra-se a fábrica de conservas São Francisco, da Feu Hermanos, convertida no Museu de Portimão. Foto do autor.

Hoje em dia, num passeio a pé, o bairro operário parece, ironicamente, um oásis de ordenamento no caos urbanístico de Portimão. A toponímia ainda conserva o passado do regime autoritário: há nomes de rua que lembram Sebastião Ramires, Duarte Pacheco e Manuel Rebelo de Andrade, responsáveis pela construção do bairro e ministros do governo de Salazar. Contudo, outros nomes foram claramente alterados depois do 25 de Abril: a rua Humberto Delgado, a rua Salvador Allende, a avenida 25 de Abril. Em suma, o “bairro histórico” é uma boa prova de como no mesmo espaço convivem diferentes memórias públicas que vão sendo renovadas com a mudança de regimes políticos.

Foto de abertura: Bairro Operário de Portimão. Fonte: Fernando Ramos, O Bairro Operário de Portimão. história e património. (Dissertação de Mestrado, Universidade Aberta, 2010).

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas, Ricardo Castro e Susana Domingues.

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