A memória histórica nos “tempos líquidos”
Imagina que de repente te vês com amnésia, sem saber quem és, de onde vens ou para onde vais. Algo de semelhante se está a passar com a memória histórica dos portugueses.
Opinião | Por Bruno Rodrigues Alves*
A maneira como os povos evocam, representam e (re)interpretam a sua História é fundamental na construção e afirmação da sua singularidade e na forma como se posicionam no presente e perspetivam o futuro. A memória coletiva contribui decisivamente para a consolidação de identidades e pertenças.
Tende a prevalecer, sobretudo nas camadas populacionais mais jovens, a ideia de que a História não tem especial utilidade ou rentabilidade. Num mundo de forte pendor tecnológico, onde as imagens tendem a sobrepor-se às ideias, em que prolifera uma força centrífuga de procura de versões sempre atualizadas de ‘gadgets’ tecnológicos (‘iPhones’, ‘iPads’, ‘tablets’…) resulta tarefa difícil reservar à História o espaço que lhe é devido.
A História ocupa, assim, um “não lugar” nesta sociedade do deslumbramento pelo que é inédito e de constante produção do novo. O sociólogo polaco Zygmunt Bauman fala-nos de “tempos líquidos”, para traduzir a ideia de que tudo é fluído e nada é feito para perdurar. Por sua vez, Francis Fukuyama, um cientista político americano, usa a expressão “fim da história” para aludir a um modelo de sociedade em que os acontecimentos se sucedem a uma velocidade vertiginosa, sem que se cristalizem na memória das pessoas.
Neste contexto, parece existir uma priorização explícita por outros temas que não a História, frequentemente associada a um certo lirismo ou romantismo antiquados.
É necessário resgatar a nossa História! Este é um exercício que tem de ser encarado com responsabilidade e alvo de um compromisso concertado entre vários agentes: governos, elites políticas, elites culturais, escolas, universidades, media, sociedade civil.
Em suma, todos e cada um de nós. Compete a todos um trabalho de (re)memoração e (re)construção desse passado comum.
Se os Descobrimentos, Vasco da Gama ou D. Sebastião se afiguram como marco incontornável do imaginário coletivo nacional, formando um capital simbólico-mitológico do “ser português”, não será menos importante conhecer outras épocas, acontecimentos e personagens.
Citemos, a título de exemplo, as origens da Fundação da Nacionalidade. Somos uma das poucas nações europeias com o privilégio de saber quem foi o seu fundador. Todavia, a produção artística sobre D. Afonso Henriques (cinema, literatura, teatro, pintura…) é praticamente inexistente.
A portugalidade colocada, por exemplo, ao serviço do futebol, terá de ser acompanhada pela portugalidade expressa noutros domínios e valores. Também as tecnologias e o mundo virtual se podem associar a este exercício, através de aplicações lúdico-educativas que eduquem para a memória histórica.
Estes “tempos líquidos”, de que a História parece ser vítima, criam vazios históricos e afetivo-identitários, contribuindo para o enfraquecimento do simbólico.
Se, como afirma Baptista-Bastos, o esquecimento traz consigo a incivilidade, impõe-se uma reflexão crítica, alargada e plural sobre estas matérias. São necessárias estratégias continuadas de divulgação da nossa História, no (re)conhecimento das nossas idiossincrasias num contexto europeu progressivamente híbrido culturalmente e indiferente aos seus princípios fundadores. A indiferença é, de resto, considerada pelo Papa Francisco como um dos grandes males contemporâneos.
Prevê-se que, em 2050, existam 340 a 400 milhões de falantes lusófonos. A narrativa atual de valorizar a cultura e a língua portuguesas, nos seus vários cambiantes – não apenas como cultura, diplomacia, simbólico e imaterial, mas como economia, estratégia, potencial, “marca” -, não se coaduna com esta amnésia histórica.
A herança histórica deve ser percecionada como “património vivo”, porque coletivamente significante e criadora de significados. A sua preservação é direito de povos e dever de Estados. Só com um conhecimento da nossa História nos poderemos, com rigor, situar local, europeia e globalmente e constituir como cidadãos mais informados, comprometidos e engajados.
Este é um conhecimento que faz a diferença. No fundo, trata-se de um direito à memória (contra o esquecimento) e de uma expressão de cidadania e democraticidade. Celebremos pois o Portugal de hoje… e o de Ontem.
(*) Sociólogo