“O agradecimento destes animais é inexplicável”

Sónia, Inês e Luís são voluntários num canil onde há mais de uma centena de cães. Cadelas, sobretudo. Cada uma tem um nome e uma história – poucas são felizes.

Visto do lado de cá da rede, Jorge parece um cão valente. Vê-nos a aproximar e ladra alto e bom som, um ladrar que se distingue do dos companheiros de pátio – talvez uma dezena e meia de cães de porte considerável que habitam uma das partes do canil da Associação dos Amigos dos Animais de Chaves (AAAC).

O canil está instalado numa quinta em ruínas nos arredores da cidade. A casa, os anexos, a antiga vacaria e um pedaço de terreno servem hoje de casa a mais de uma centena de cães. Ali, os animais não estão fechados em pequenos compartimentos. São agrupados em espaços maiores, segundo determinados critérios para evitar conflitos que, mesmo assim, acontecem e, não raras vezes, terminam em morte. Há, por exemplo, um espaço para as cadelas com cio, outro para os cães inofensivos, outro para os mais agressivos.

Voltando ao cão Jorge. Tudo muda quando os irmãos Inês e Luís Lino, de 13 e 18 anos, abrem a porta que dá acesso ao pátio onde ele ladra. De repente, o cão alto e de patas compridas desaparece, refugia-se no espaço interior e segundos depois estará já na sua posição de defesa: encostado ao ângulo formado por duas paredes, incapaz de fixar em nós o seu olhar triste e amedrontado. “Se nos aproximarmos mais urina-se”, contam os irmãos voluntários.

Jorge foi encontrado por um senhor no meio do mato, atado a uma árvore, sem possibilidade de fuga. Os vários meses já passados no canil ainda não foram suficientes para ultrapassar o medo que sente dos humanos. Entre os cães que se aproximam e nos saltam, carentes de mimos e atenção, há outras histórias tristes, de animais que tiveram o azar de se cruzar com gente a quem parece faltar coração.

Cadelas encontradas com arame farpado à volta do pescoço, cachorros acabados de nascer colocados dentro de uma caixa de papelão, animais doentes atirados dentro de sacos para o interior do canil, cães de raça (muitos) ali chegados depois de adultos, abandonados simplesmente porque cresceram, ou porque roem objetos, ou porque quem cresceu foram as crianças para quem foram comprados.

“Há pessoas que compram cães como se fossem brinquedos, esquecem-se que são seres vivos”, revolta-se Luís. Sónia Salgado, uma das seis voluntárias permanentes do canil, que fazem entre si turnos para lavar, alimentar, dar medicação e algum conforto aos animais aos sábados e aos domingos (quando o funcionário a tempo inteiro do canil está de folga), teve de aprender a lidar com histórias como estas, que nos vai contando durante a manhã. “Não é fácil”, admite.

Vive o voluntariado intensamente. Muitas vezes, é a ela que ligam quando surge um caso bicudo com algum cão na cidade, mesmo antes de contactarem o veterinário municipal ou a GNR. Dedica-se a esta causa há onze anos. Sabe os nomes de todos os animais. Alguns estão ali há tantos anos como ela. Há mesmo os que ganham estatuto especial. Como uma rafeirinha beige, a Cátia, a única que tem direito a entrar com ela na pequena enfermaria. “Gosta de se meter debaixo da secretária enquanto os voluntários preparam a medicação para os cães que precisam”, conta.

Essa é a parte preferida de Luís Lino, que começou como voluntário quando tinha 14 anos. Foi ele quem se dirigiu a AAAC a pedir para colaborar e, sempre que os estudos o permitem, fá-lo, juntamente com a irmã, Inês, que quando começou a ajudar no canil tinha apenas nove anos – “muitos cães saltavam-me e eram maiores do que eu, mas nunca tive medo nem fui mordida”, recorda.

Nas férias são mais assíduos: “É uma ótima forma de ocupar o tempo”, comenta Inês. Para Luís, o voluntariado tem sido uma confirmação do que quer para a vida: “Vou entrar Medicina Veterinária agora em setembro”. Anima-se com a perspetiva de vir a poder ajudar ainda mais estes animais quando estiver formado. Mas já tem ajudado muito.

Como todos os voluntários, aprendeu a dar injeções, comprimidos e a fazer curativos aos cães doentes. E há muitos. Uns com leishmaniose (uma doença provocada pela picada de um inseto), outros porque ficaram feridos numa briga qualquer – chamam-lhes “mastigados”. Quem ali trabalha por vontade sonha com apoios financeiros para esterilizar todas as cadelas. “Seria fundamental para que as brigas diminuíssem, há muitas brigas e estragos no canil por causa dos cios”, revela Sónia.

VOLUNTÁRIOS PRECISAM-SE
Luís está em minoria. Os voluntários são, quase todas, voluntárias. E a força masculina faz falta. As manhãs de voluntariado, ali, são intensas. Começam pelas limpezas – é preciso carregar baldes de água com lixívia, num canil onde há muitas escadas para subir e descer. Os baldes com a ração também são pesados (e são cerca de 50 quilos de comida por dia para distribuir por todos), tal como os de água, para encher as banheiras de bebé de onde os cães bebem.

Os gastos são suportados com as quotas dos sócios (cerca de 500) e com donativos (alguns chegam do estrangeiro). Há clínicas que lhes fazem preços especiais, um laboratório de análises que fornece os serviços gratuitamente. Todos os tratamentos feitos são recomendados por veterinários da cidade.
Mesmo assim faltam verbas, por exemplo para fazer a desparasitação externa dos animais (opta-se apenas pela interna, através de comprimidos).

Ali, os voluntários riem-se porque sabem que são eles que muitas vezes passam pulgas aos animais de estimação que têm em casa. “A roupa vai logo para lavar, mas tenho sempre medo de pegar aos meus”, conta outra voluntária de 21 anos, Tetyana Leskiv. Desde Maio que ajuda e já aprendeu algumas coisas. Deixou, por exemplo de ir com pernas ou braços à mostra: “saía daqui toda arranhada”, lembra.

Apesar das histórias difíceis, Tetyana está a adorar a experiência. E a verdade é que também há casos felizes. “Quem cá vem procura essencialmente cachorrinhos, de pequeno ou grande porte. Os de porte médio são mais difíceis de adotar. E as fêmeas então…”, desabafa Sónia. Oitenta por cento dos habitantes do Canil são cadelas para quem, apesar de tudo, há sempre uma esperança: “às vezes há quem as leve porque se sensibiliza com um gesto ou se apaixona por um olhar”.

Será que um dia isso vai acontecer com o amedrontado Jorge, o cão com que abrimos esta reportagem?

Fazer festas e mimar os cães também faz parte do trabalho de um voluntário. Geralmente fica para o fim, quando o relógio já passou o meio-dia e o cansaço se começa a fazer sentir.  Mesmo assim, “é uma sensação de bem-estar”, transmite Sónia. E acrescenta: “O agradecimento destes animais é inexplicável”.

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