O início da Guerra Civil de Espanha, 80 anos depois
A mais mortífera guerra civil da Europa Ocidental no século XX saldou-se pela derrota da II República espanhola e a implantação da ditadura franquista.
Por Rui Aballe Vieira (*) – Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa
Em Fevereiro de 1936, uma coligação de partidos de esquerda saiu vencedora das eleições gerais em Espanha. Cinco meses depois, a 18 de Julho, um golpe militar contra o governo de Madrid desencadeou uma guerra civil que duraria três anos (de 1936 a 1939) e terminaria com a vitória das forças sublevadas sob o comando do general Franco (a ditadura franquista duraria de 1939 a 1975). Que antecedentes explicam esta reacção contra um governo saído das urnas?
Milicianos das organizações sindicais marcham pelas ruas de Barcelona | Foto: Agustí Centelles/CDMH (Centro Documental de la Memoria Histórica)
A derrota das direitas (que não concorreram coligadas) nas eleições de Fevereiro de 1936, face à Frente Popular (coligação composta pela maioria dos partidos de esquerda e centro-esquerda), e a crescente polarização da sociedade espanhola que daí adveio, convenceram os inimigos da República que era chegado o momento de recorrer à força mediante uma rebelião militar. Foi então que um grupo de generais, encabeçados por Emilio Mola, José Sanjurjo e Francisco Franco, decidiu levantar-se em armas contra a legalidade constitucional. O processo conspiratório, posto em marcha na Primavera de 1936, congregou militares da UME (‘Unión Militar Española’, organização clandestina antidemocrática e antirepublicana), carlistas, monárquicos e a extrema-direita fascista.
As unidades mais modernas da armada espanhola, os cruzadores “Canarias” e “Baleares” (ambos foram terminados após o início das hostilidades em Ferrol), ficaram em mãos nacionalistas. Os dois navios, ultramodernos à época, eram um formidável recurso, mas nos finais do Verão de 1936 a frota leal ao governo republicano – um couraçado, três cruzadores, dezasseis destroyers e todos os submarinos – superava em muito a dos militares rebeldes, que contavam com um couraçado, um cruzador operacional e um destroyer | Foto: Andrés Gómez
O levantamento militar (‘alzamiento’ em espanhol) arrancou em Marrocos a 17 de Julho de 1936, a pretexto de manobras, tendo-se propagado à maioria das guarnições do exército na península e nos arquipélagos das Baleares e das Canárias no dia seguinte. Menos de uma semana volvida, os rebeldes (também designados como nacionalistas, por se autodenominarem como ‘nacionales’) dominavam uma faixa do norte e centro do território espanhol peninsular (Álava, Navarra, León, Castela, Galiza, metade de Aragão, a zona de Cáceres na Extremadura e, na Andaluzia, as capitais provinciais de Córdova, Granada e Sevilha), as ilhas Canárias e Baleares (com excepção de Minorca) e todo o Protectorado de Marrocos. Nos principais centros urbanos fora das zonas referidas, a rebelião foi sufocada pelas forças de segurança (‘Guardia Civil’ e ‘Guardia de Asalto’) que permaneceram leais, auxiliadas por milícias populares (anarquistas, socialistas e comunistas) às quais tinham sido distribuídas armas. Após os primeiros confrontos, o controlo governamental permanecia firme em duas zonas separadas entre si: uma compreendia as duas maiores cidades de Espanha, Madrid e Barcelona, bem como toda a Catalunha, a zona de Badajoz na Extremadura, o resto da Andaluzia, La Mancha e a costa mediterrânica da Catalunha a Málaga; e outra, isolada, a norte, desenhava-se das Astúrias (excepto a capital, Oviedo) à Biscaia e Guipúscoa.
Os bombardeamentos aéreos contra objectivos civis tornaram-se comuns na Guerra Civil de Espanha. Fotografia obtida pela tripulação de um bombardeiro italiano durante uma missão sobre Barcelona (Março de 1938). Distinguem-se as colunas de fumo provocadas pelas explosões das bombas largadas pelos aviões | Foto: Centre d’Història Contemporània de Catalunya
Embora o grosso do tecido industrial (que incluía a indústria metalúrgica e metalomecânica, as minas bascas e asturianas e as indústrias têxteis e químicas da Catalunha) e da população activa tenha permanecido em zonas sob controlo republicano, estas eram menos produtivas do ponto de vista agrícola e pecuário (com excepção da região valenciana). O governo republicano tinha também em seu poder as reservas de ouro do Banco de Espanha. Nas regiões controladas pelos nacionalistas a infraestrutura industrial era mais débil. Compensavam-no com a posse das melhores regiões agrícolas e ganadeiras, que viriam a revelar-se preciosas. Os rebeldes triunfaram em regiões largamente rurais e em algumas capitais de província no interior (que correspondiam de perto às circunscrições onde as candidaturas de direita obtiveram mais votos), tendo fracassado em zonas mais urbanas e modernizadas. Começava assim uma feroz guerra civil que se prolongaria por três anos, durante os quais a população civil sofreu inúmeras privações e uma ferocíssima repressão.
A aviação assumiu uma importância fulcral e decidiu o resultado de muitas operações: em Novembro de 1936 os caças fornecidos pela URSS ajudaram os defensores de Madrid a deter os raids aéreos contra a cidade. Na fotografia, um Polikarpov I-16 “Mosca” com pilotos republicanos (1938) | Foto: © David Seymour/Magnum Photos
Em Portugal, a eclosão do estado de guerra no país vizinho estimulou a deriva fascizante no seio do Estado Novo, o regime antidemocrático institucionalizado pela Constituição de 1933, continuador da Ditadura Militar que derrubara a I República em 28 de Maio de 1926. Salazar e as elites políticas e económicas que apoiavam a ditadura concordavam quanto à urgência de garantir a vitória dos nacionalistas espanhóis, enquanto condição essencial para a própria sobrevivência do regime português. O ditador português, influenciado pelas informações que lhe chegavam de Espanha, autorizou todas as acções que, a partir do território nacional, pudessem apressar o fim do governo republicano e a sua substituição por um regime ideologicamente compatível com o de Lisboa.
A aviação nacionalista dispunha de capacidade ofensiva muito superior à sua congénere e adversária republicana. Três bombardeiros Savoia-Marchetti S.79 regressam à sua base nas Baleares (1938) | Foto: Giancarlo Garello
Embora confinada às fronteiras espanholas, a guerra teve ampla repercussão internacional. A URSS, e em muito menor grau o México e a Checoslováquia, foram os únicos países a fornecer armas à República espanhola. O fluxo contínuo de armamento e homens proporcionado pela Itália fascista e pela Alemanha nazi revelou-se essencial para o êxito do esforço de guerra rebelde (a 27 de Julho de 1936 chegavam a Espanha os primeiros aviões de combate italianos, enviados por Mussolini para reforço da cobertura aérea dos rebeldes).
A causa republicana foi abraçada por artistas e intelectuais de todo o mundo. O escritor Ernest Hemingway com soldados em Teruel (Dezembro de 1937). Foto: Robert Capa © International Center of Photography
Do ponto de vista militar, a Guerra Civil Espanhola foi um conflito arcaico, amiúde estático. A guerra moderna, tecnológica, travou-se no ar, onde a crescente superioridade ofensiva dos nacionalistas fez com que estes mantivessem a iniciativa de 1937 em diante. Foi também a partir dos ares que se abateu sobre a população civil de muitos centros urbanos da zona republicana o terror dos bombardeamentos aéreos, pela mão da ‘Legión’ Condor alemã e da ‘Aviazione Legionaria’ italiana: a cidade basca de Guernica, arrasada pelos bombardeiros alemães e italianos às ordens de Franco, é o caso mais conhecido, mas Madrid, a partir de Outubro de 1936, e depois Barcelona, Valencia e outras cidades do litoral mediterrânico, seriam também visadas pelas esquadrilhas rebeldes até ao final da guerra.
Refugiados republicanos a caminho do exílio (Março de 1939) | Foto: Robert Capa © International Center of Photography
Uma vez ultrapassada a fase de diretório da Junta de Defensa Nacional, máximo órgão estatal na zona rebelde, depressa emergiria o sistema de organização que caracterizaria a ditadura franquista nas décadas subsequentes, que tinha no Exército, na Igreja e, a partir de 1937, na Falange unificada, os seus três esteios principais. À medida que o conflito evoluiu, o regime franquista incorporou elementos comuns aos seus aliados alemães e italianos: um partido único, a saudação romana, a retórica imperial e corporativa e a exaltação da figura do chefe, o ‘Caudillo’.
(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História – do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas e Ricardo Castro.