“Na Venezuela eu não ia poder ser o que quisesse”
Annaly já viveu em três países. Hoje, a residir no Porto, conta como foi habitar cidades inseguras, enfrentar a escassez de alimentos e meter a vida numa mala.
Joana Fillol (Entrevista) Angélica Carmo e Joana Fillol (Fotos)
Aos 15 anos, ela é assim: tem um ar tímido e meigo, uma cara de menina que cruza com uma inesperada maturidade ao falar. Geralmente usa óculos. Mas não são eles que a fazem ver melhor o mundo. Quando muito, fazem com que o veja mais nítido. As lentes com que Annaly Aguilar Rivas observa – e observa atentamente – a realidade que a rodeia são mais umas lentes em sentido figurado. São as lentes de quem foi obrigada desde muito cedo a enfrentar dificuldades maiores do que a idade.
Annaly nasceu e cresceu numa Venezuela onde a escassez de alimentos era o pão nosso de cada dia, tal como a insegurança. Insegurança que, de tão presente, se tornou banal. Mesmo depois de ter tido uma pistola a disparar ao seu lado, nunca sentiu medo de sair à rua. Só agora, à distância de um oceano, vê como tomava por normal o… anormal. No Porto, onde estuda no 8º ano, continua a espantar-se com os colegas que transportam o telemóvel no bolso de trás, à vista de todos, sem recearem ser roubados. Espanta-se também com o preço de um chocolate – um verdadeiro “luxo” no país onde nasceu.
No Porto, vive com a mãe, o pai e o gato Axel, que já adotou cá e já tinha nome. Se tivesse sido ela a batizá-lo tê-lo-ia chamado Escorpion, em homenagem ao seu jogo favorito, Mortal Combat. Falámos com Annaly na escola onde anda desde que, há um ano e meio, chegou a Portugal. Às perguntas, respondeu num português temperado pela melodia doce que carateriza a fala da América Latina. Emocionou-se algumas vezes. Mas também sorriu. Os portugueses – diz – não podiam ter feito mais para a ajudar a adaptar-se. E ela já se sente em casa no Porto. Gosta de francesinha, não gosta de futebol, “mas eu sou do F.C.P. porque é do Porto”.
Passemos ao discurso direto.
Jornalíssimo – Por que é que a tua família decidiu vir viver para cá?
Annaly – Eu vivi na Venezuela até aos dez anos, depois fui para o Chile. Estivemos lá dois anos e meio e viemos cá para Portugal. A minha mãe e o meu pai queriam o melhor para mim. Se ficássemos na Venezuela eu não ia poder ser o que quisesse. Por isso emigrámos para o Chile, mas já nesse momento sabíamos que queríamos ir para a Europa. Pensávamos sobretudo em Espanha. Mas havia já muitos emigrantes a irem para lá e então, na Europa, Portugal era o país mais fácil por causa do idioma.
J – Por que é que escolheram o Porto para morar?
A – Não sei muito bem! Acho que foi porque Lisboa, por ser a capital, tornava-se mais cara para viver. Mas na Venezuela e no Chile vivíamos na capital, em Caracas e em Santiago do Chile. O meu pai tinha-me dito que o Porto é uma das cidades mais conhecidas de Portugal. Nós viemos para cá com a ajuda de uma senhora venezuelana que conhecemos na Internet. Encontrou-nos uma casa para vivermos aqui e por isso viemos para cá.
J – Não conheciam cá ninguém?
A – Não. Só essa senhora, pela Internet. Ela já estava cá há um tempo, o trabalho dela é ajudar outros emigrantes venezuelanos a virem para cá.
J – Deixaste família na Venezuela?
A – Eu tinha deixado a minha família quando fui para o Chile reencontrar o meu pai. Na Venezuela ficou a minha avó por parte da minha mãe, que foi a pessoa com quem passei mais tempo [faleceu dias depois desta entrevista], e o meu avô por parte do meu pai, mas dele não me lembro tão bem.
J – Para além da família, de que é que sentes mais falta?
A – O Natal na Venezuela é muito, muito bonito! Eu sempre que olhava pela janela via um montão de luzes, nas árvores também. Na rua passavas pelas pessoas e todos diziam “Feliz Natal!”. Era muito giro! Vinham algumas pessoas da família passar o Natal connosco, cozinhávamos, a casa era completamente decorada de coisas de Natal. Nenhuma coisa se livrava de ficar decorada! Aqui e no Chile não festejamos tanto. No Chile festejam as “Fiestas Pátrias” e não tanto o Natal. Há um prato típico na Venezuela que se chama “Hallacas” e os meus Pais e os amigos faziam todos para ver quem fazia as melhores.
J – Sentes falta da comida de lá?
A – Há coisas que não posso comer como os “tequeños”, que é uma massa de farinha de trigo frita ou assada que leva queijo dentro. Vendem-se também aqui, mas não são iguais às da Venezuela.
J – Mas há outras coisas que conseguem cozinhar cá e que dão para matar as saudades?
A – Sim, como muito arepa. É como uma massa que se expande, se recheia com o que se quiser e que se pode comer assada ou frita. É muito boa!
J – Tens mais maneiras de matar as saudades de lá?
A – Não sei… [olha para o telemóvel].
J – O telemóvel ajuda a matar as saudades?
A – Quando sinto saudades falo com o meu melhor amigo aqui e acabo por me esquecer.
J – Isso significa que já tens bons amigos cá?
A – Tenho dois melhores amigos que são da minha turma, o João e o César.
J – E com os amigos de lá?
A – Quando cheguei ao Chile foi quando apareceu a pandemia da Covid-19. Fiz dois amigos no prédio onde vivia e falávamos muito. Eram a Paz, que era chilena, e o Juan Diego, que também era venezuelano. Chorámos muito quando me tive que despedir deles e vir para cá, mas agora não tenho o contacto da Paz e o Juan Diego está muito diferente da pessoa que era quando eu o conheci…
J – E na internet, continuas a seguir muitos conteúdos venezuelanos ou chilenos?
A – Eu vejo muitas coisas em espanhol. Os meus amigos já me recomendaram youtubers portugueses para ver, mas não é o mesmo… Não sinto da mesma forma ao vê-los… Eu vejo mais youtubers que falam em espanhol e também vejo vídeos da Venezuela. Procuro no YouTube o local onde ficava a minha casa, o supermercado, coisas assim… Mas não passo muito tempo a ver este tipo de conteúdos porque depois sinto tristeza… É só para recordar.
J – Conseguiste trazer tudo o que querias contigo?!
A – Não, nem pensar! Havia muitas coisas que queria ter trazido da Venezuela, mas não pude porque não tínhamos muito espaço.
J – Tiveste que selecionar?
A – Sim, quando fui para o Chile e depois também do Chile para cá. Uma coisa que me custou mesmo muito foi deixar uns sapatos que o meu tio me tinha dado na Venezuela e que eu levei comigo para o Chile… Mas antes de vir para Portugal tive que me despedir deles… [fica com a voz embargada]. E também me custa não ter trazido da Venezuela tantas coisas que hoje queria ter comigo… Mas era muito pequena e não sabia o que ia querer ter agora…
J – Por exemplo?
A – Os peluches [emociona-se de novo]… Algumas roupas, principalmente pijamas de que gostava muito. Já não me serviriam, mas seria uma lembrança. No Chile, além dos sapatos, acho que não me custou tanto deixar coisas, porque nunca as senti como se fossem minhas.
J – Emigrar é uma coisa difícil…
A – Eu não sei muito bem, mas lembro-me que o meu pai e a minha mãe tiveram que trabalhar muito e por isso é que eu e a minha mãe só pudemos ir ter com o meu pai ao Chile dois anos mais tarde. O meu pai foi de autocarro e teve que passar pela Colômbia, pelo Equador e pelo Perú antes de chegar ao Chile. Foi muito tempo e ele não queria que eu e a minha mãe passássemos pelo mesmo. Quis que fossemos de avião e isso foi mais caro. E para viajarmos para Portugal também foi difícil. Tiveram que trabalhar muito, muito, muito.
J – Como é a sensação de deixar o nosso país?
A – Eu sinto saudades da Venezuela, mas se eu tivesse que deixar a Venezuela com a idade que tenho hoje sei que iria custar-me muito mais. Como era muito nova, não tinha o apego que tenho agora.
J – Achas que tens mais apego à Venezuela agora do que tinhas na altura?
A – Sim.
J – Estar fora faz com que aumente o sentimento de pertença ao nosso país? À Venezuela, no teu caso.
A – Sim, também porque agora estou muito mais longe do que estava antes, quando estava no Chile. Agora, se quisermos, não podemos ir à Venezuela. Vamos ter que esperar muito tempo. Temos que conseguir a nacionalidade para podermos depois viajar até lá.
J – Pensas voltar a viver lá um dia?
A – Para viver não. O país tem que melhorar para eu poder viver lá. Se vivesse lá agora não ia correr bem.
J – Porquê?
A – É muito inseguro. Eu recordo-me que estive duas vezes no meio de um ataque à mão armada. Quando era pequena, tinha cinco anos, eu e a minha mãe tivemos que atirar-nos ao chão, deitarmo-nos, porque apareceu um homem com uma pistola. Lembro-me de ouvir o som das balas!
J – Estiveste no meio de um tiroteio?
A – Sim. E depois lembro-me de outra vez em que estava com a minha mãe no autocarro e entrou alguém também com uma pistola. Não houve feridos, mas…
J – Tinham medo de sair à rua?
A – Não, nunca tivemos medo, porque já era algo normal.
J – Agora cá é que tens a perceção de que não é tão normal assim?
A – Sim, é muito diferente. No Chile, primeiro, também era mais ou menos assim, mas depois começou a haver protestos e as pessoas estavam loucas, como na Venezuela.
J – A vida na Venezuela também era difícil por todos os bens estarem muito caros, não era?
A – Sim, imenso! Os meus pais nunca deixaram que me faltasse nada mas, por exemplo, um doce ou um chocolate eram um luxo. Aqui um chocolate qualquer custa um euro. Na Venezuela seria o equivalente a dez euros. Mas também o queijo, o presunto, o pão… era tudo muito caro! Não me lembro de comer muitas vezes ao dia. Não passava fome, mas só comia duas vezes, logo de manhã e à noite, ao jantar. Aqui tomo pequeno-almoço, almoço, jantar e um doce à tarde. Neste momento, na Venezuela a situação está melhor em termos de comida, já há mais, mas continua a faltar dinheiro.
J – Convives com outros venezuelanos cá no Porto?
A – Não conheço muitos, há pessoas venezuelanas aqui mas vivem longe de nós. Há pouco tempo fomos a Braga, encontrámos um senhor venezuelano e falámos um pouco. Ele também tinha ido para o Chile antes de vir para Portugal. Quando encontras um venezuelano noutro país é um sentimento reconfortante [fica com lágrimas nos olhos].
J – Como é que foi a tua adaptação a Portugal?
A – Foi fácil e difícil ao mesmo tempo. Ao princípio dei-me bem com as pessoas da minha turma, não tive grandes problemas. Mas às vezes eu não entendo o que dizem e tenho que pedir que repitam uma e outra vez. O não entender por vezes deixa-me muito stressada e por isso não gostava muito dos trabalhos de grupo. Só conheço duas pessoas que entendo bem. Há pessoas que falam e eu não entendo nada. Tenho que me habituar à pessoa para começar a entendê-la.
J – Mas de uma maneira geral sentiste que foste bem recebida?
A – Sim, sim. Foi bom vir para cá. Gosto de estar cá. Gosto de tudo! Gosto da escola, gosto da francesinha, dos cachorros, dos biscoitos, gosto do facto de haver flores – na Venezuela há mais, mas eu não saia muito de casa na Venezuela… Gosto que haja frio aqui! Eu gosto de calor, mas não de muito calor. Gosto de haver praia – até fica mais perto para mim do que na Venezuela! -, de haver pessoas, uma comunidade com quem se pode falar… E gosto da segurança. Em geral gosto do país.
J – E de que é que não gostas?
A – De alguns colegas de turma! Falam muito alto, não sei como no ano passado foram a melhor turma! Não gosto disso e não gosto de bacalhau! Não gosto de nenhum peixe.
J – A escola cá e na Venezuela é muito diferente?
A – É muito diferente! Na Venezuela só estive até ao 5º ano, mas lembro-me de que havia só uma professora por turma. E surpreendo-me quando ouço dizer que uma turma com 25 alunos é muito grande. Na Venezuela eram uns 40 alunos por turma e só uma professora. A diferença é que a turma lá era calada. Não havia necessidade de haver campainhas [na escola em que Annaly anda, as salas estão equipadas com campainhas e os professores tocam-nas quando algum ou alguma aluna se está a portar mal para chamar um funcionário e marcar falta disciplinar]. Na Venezuela isso não existia porque não havia colegas que se portassem mal.
J – Achas que aqui há menos respeito pelos professores do que na Venezuela?
A – Sim, sim. Nem sei o que se fazia na Venezuela se um aluno se portasse mal porque isso não acontecia. A turma era muito calada, estudava muito. Aqui acho que por vezes há falta de respeito com os outros colegas e com os professores. Mas na Venezuela faltavam amizades. Ninguém na minha turma era amigo de ninguém. Só conhecidos. Ajudavam às vezes, mas mais nada.
J – A que é que te custou mais a habituar em Portugal?
A – Ao idioma e também à segurança. Eu sei que aqui é seguro, mas na Venezuela não podias andar com o telemóvel. É estranho aqui poder andar com ele, no metro, no autocarro… Os meus pais na Venezuela levavam o telemóvel com eles, mas era muito, muito escondido. Aqui alguns colegas até o levam no bolso detrás e à vista! Eu lembro-me lá na Venezuela, na escola, desapareciam sempre os estojos, os lápis, as borrachas, os afia-lápis… Tudo desaparecia, era tudo roubado! Até as mochilas!
J – O que é que foi mais difícil em termos da língua?
A – Eu já sabia um pouco de português quando cheguei cá, mas foi muito difícil… Não é o mesmo aprender um pouco ou ouvir depois toda a gente a falar… Era muito estranho! Às vezes não conseguia comunicar o que queria e então acabava por ficar calada.
J – O que é que te tem ajudado mais a aprender português?
A – Falar com amigos e escrever-lhes. E eles às vezes corrigem-me os erros! Tento sempre pensar em português e fazer as coisas todas dizendo o que vou fazer em português.
J – Portugal e a Venezuela têm muitas coisas em comum?
A – Sim e não. No passado a Venezuela foi um país muito rico e muitas pessoas emigraram para lá. Entre elas, muitos portugueses. O meu pai dizia-me que as padarias aqui iam ser muito parecidas ou quase iguais às da Venezuela. Uma coisa bastante diferente é que, na Venezuela, é aos 15 anos que fazemos a maior festa e não tanto aos 18 anos. O que se comemora é que a “quinciañera” [o nome dado às raparigas que fazem quinze anos] passa da fase de “menina” para “jovem”, adolescente. Normalmente faz-se uma grande festa, com muita comida e o mais importante é a Valsa, que se dança com o pai, ou com um familiar. Outra tradição é que no dia dos 15 anos, simbolicamente, trocamos as sapatilhas por sapatos de salto. A festa não tem que ser necessariamente muito grande, no meu caso foi pequena, com pais e amigos.
J – Que conselhos darias a quem esteja a passar pelo mesmo que tu, a adaptar-se a um país novo?
A – Aprender o idioma primeiro e procurar palavras difíceis, que acha que vão ser iguais mas afinal não são. E aceitar que as coisas não vão ser iguais, não esperar o mesmo, esperar algo completamente distinto.