A longa luta pela despenalização do aborto em Portugal
Apesar da abertura da sociedade no pós-Revolução, o direito elementar da mulher a decidir sobre o próprio corpo continuou-lhe vedado.
“Neste país de Abril, em que a luta clandestina pela liberdade deixou de ter lugar, a liberdade de dar a vida é ainda decidida clandestinamente.”
Maria Antónia Fiadeiro, Aborto, O Crime está na Lei, 1984, p.43
Por Andreia Rodrigues*
A existência de uma dinâmica social e cultural profundamente conservadora e conformista, durante a vigência do Estado Novo, permitiu o exacerbamento das perspetivas que reduziam a posição cívica da mulher às qualidades de mãe, esposa e dona de casa. A Revolução do 25 de abril de 1974, apesar de simbolizar a derradeira conquista da liberdade do povo português, não materializou uma rutura permanente com as conceções arcaicas e misóginas, referentes ao papel da mulher, incutidas desde há muito na sociedade portuguesa.
Atendendo ao quadro social, político e institucional nacional dos anos 70 e 80, o facto de o regime incriminatório do aborto se ter mantido não surpreende. Apesar da abertura da sociedade no pós-Revolução, o direito elementar da mulher a decidir sobre o próprio corpo continuou-lhe vedado.
O aborto continuou a ser proibido por lei, o que obrigou milhares e milhares de mulheres a abortarem na clandestinidade. Sem condições económicas para cuidar de (mais) um filho, muitas decidiam abortar, colocando a sua vida nas mãos de desconhecidas sem formação. Os abortos eram realizados em condições completamente degradantes e, como resultado, o número de mortes maternas em Portugal ultrapassava as 2000 anualmente.
O início da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos da mulher
Perante esta realidade, alterar a lei era imperativo. A ação desempenhada pelos movimentos de mulheres foi crucial na luta pelo direito ao aborto, ao planeamento familiar e à educação sexual. Através de mobilizações, abaixo-assinados, publicações de brochuras e folhetos informativos, exerceram uma pressão extraordinária no poder político, de maneira a garantir que este se debruçasse devidamente num debate público, sério e informativo, sobre os problemas das mulheres no país. Desafiando os preconceitos seculares e a desconfiança e hostilidade com que a população os encarava, estes grupos de mulheres, incansáveis na luta pela emancipação da mulher na sociedade contemporânea nacional, foram fundamentais para que os sucessivos governos estabelecessem o problema do aborto na agenda política do país.
A par das organizações de mulheres, os partidos da esquerda assumiram um papel de tremenda relevância na luta pela despenalização em Portugal, por terem protagonizado os primeiros esforços para levar a discussão sobre o problema do aborto à Assembleia da República. Apoiaram e auscultaram as preocupações e as reivindicações dos grupos de mulheres, e prepararam os primeiros projetos de lei sobre a despenalização do aborto, o direito ao planeamento familiar e à educação sexual e à proteção de uma maternidade desejada, consciente e responsável.
Como resultado do longo e complexo processo de consciencialização da população portuguesa para os problemas e direitos das mulheres – em que a imprensa nacional e a televisão foram fundamentais para a divulgação e cobertura dos episódios mais marcantes da luta feminista em curso pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres-, o PCP apresentou, em fevereiro de 1982, três projetos de lei sobre a Proteção e Defesa da Maternidade, o Direito ao Planeamento Familiar e Educação Sexual e a Interrupção Voluntária da Gravidez.
A questão do aborto chega ao Parlamento
Durante o debate, em novembro de 1982, evidenciaram-se duas posições completamente distintas. Por um lado, a fação mais conservadora do governo da Aliança Democrática reduziu a discussão em torno da interrupção voluntária da gravidez a argumentações meramente filosóficas, concernentes sobre o início da vida humana e o direito ao embrião a viver, desvirtuando por completo a questão central do debate e desvalorizando o aborto como um direito elementar da mulher. Já no que diz respeito aos deputados da esquerda democrática portuguesa, estes colocaram no centro do debate o direito de a mulher dispor livremente do seu corpo e a necessidade de se fazerem criar as condições necessárias à garantia da maternidade como um ato livre e não como fruto do fatalismo biológico das mulheres.
O primeiro debate sobre o aborto em Portugal, que resultou de ações e atividades impulsionadas pelos movimentos de mulheres – sempre apoiadas e inspiradas pelos movimentos feministas europeus e norte-americano -, marcou a história contemporânea do país, pela importância de ter colocado um fim à inércia governativa do poder político sobre os problemas das mulheres no país, mas também por ter fomentado e incentivado a consciencialização dos portugueses sobre a sua forma de estar na família, na sociedade e na vida, pondo em causa conceções ideológicas seculares e retrógradas e abrindo caminho a uma profunda e necessária alteração de mentalidades.
Apesar da rejeição do projeto-lei nº309/II, sobre a interrupção voluntária da gravidez, abriu-se o caminho para a aprovação de um diploma que despenalizasse o aborto e para a primeira grande vitória dos movimentos de mulheres em Portugal.
1984: o ano da aprovação da primeira lei sobre a IVG em Portugal
Em janeiro de 1984, o Parlamento português aprovaria a iniciativa legislativa apresentada pelo Partido Socialista (o projeto-lei nº265/III), que permitia a interrupção voluntária da gravidez em três situações específicas: se a gravidez constituísse uma ameaça à vida ou à saúde da mulher grávida (o aborto terapêutico, que poderia ser realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez); se fosse previsto que o nascituro viesse a sofrer de uma grave doença ou malformação (aborto eugénico, que poderia ser levado avante durante as primeiras 16 semanas de gestação); ou se houvesse indícios de que a gravidez tivesse resultado de violação da mulher (aborto ético, que poderia ser feito nas primeiras 12 semanas de gravidez). Apesar de ser uma iniciativa legislativa curta e limitada, não deixou de significar o fim do isolamento de Portugal no mosaico europeu concernente aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A luta pelo direito ao aborto em Portugal nos anos 80, além de estar intimamente ligada à ação incansável e muito relevante dos diversos grupos de mulheres, é também indissociável de figuras como as de Zita Seabra, Maria Teresa Ambrósio, Teresa Santa Clara Gomes e Maria Belo.
Além destas deputadas, destaca-se igualmente Natália Correia (1923-2023), uma grande defensora dos direitos e das liberdades sexuais e reprodutivos das mulheres em Portugal. Entre todos os momentos que protagonizou no Parlamento, existe um que já é, certamente, conhecido por todos nós: durante uma discussão acerca da despenalização do aborto, em 1982, o então deputado do CDS, João Morgado, argumentou que o ato sexual deveria estar destinado somente para a procriação. Após esta intervenção – que espelha muito bem a posição contrária dos conservadores à despenalização do aborto no nosso país -, Natália Correia subiu à tribuna e respondeu de uma forma muito original, declamando um poema que acabaria por marcar profundamente a longa luta pela despenalização do aborto em Portugal:
Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
FOTO DE ABERTURA: Pintura de Júlio Resende ‘Women’, fotografada por Pedro Ribeiro Simões/Flickr
(*) Investigadora do HTC-CFE, NOVA FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.