Motor diesel de alta compressão de três cilindros (SLM) de 1927 da Central Eléctrica da Levada de Tomar, Portugal (Fotografias: Matthias Tissot).

Conservação e restauro de património industrial: o caso do motor a diesel da Central da Levada de Tomar

Por Isabel Tissot*

O processo de conservação e restauro envolve várias etapas e inicia-se pela avaliação da necessidade de conservar um determinado objecto. O conservador-restaurador, que actua em colaboração com uma equipa multidisciplinar (incluindo os responsáveis pela preservação dos objectos), deve identificar todos os aspectos relacionados com o valor histórico, técnico, funcional, estético do objecto, entre outros, como também a sua construção, utilização e grau de degradação. Este conhecimento é essencial para avaliar as necessidades de conservação e determinar o processo mais adequado a ser realizado.

Além disso, esta análise pormenorizada permite recolher um conjunto de informações valiosas que podem contribuir para o estudo histórico do objecto e das prácticas industriais a ele associadas.

Mas uma questão se impõe: Como é que todo este processo se desenvolve na prática? E, mais ainda, em que medida a conservação e restauro de património industrial se diferencia da de outros tipos de património cultural? Esta última pergunta é crucial, pois o património industrial apresenta desafios únicos, como o tratamento de materiais não convencionais, o tamanho e a complexidade dos equipamentos e instalações, e, por vezes, a preservação da funcionalidade das máquinas, o que exige uma abordagem distinta e especializada. É também por esta especificidade que a conservação e restauro do património industrial é considerada, ainda hoje, uma área emergente na qual há vários desafios a ultrapassar, tornando esta área fascinante e entusiasmante.

Para ilustrar a prática da conservação e restauro de património industrial dá-se um exemplo do projecto de conservação do património integrado da central eléctrica da Levada de Tomar. Esta central possui três geradores de diferentes datas e fabricantes permitindo interpretar duas formas de produção de electricidade, recorrendo a fontes de energia hídrica e térmica [1]. Um deles, é um motor a diesel de alta compressão de três cilindros fabricado pela Société Suisse de construction de locomotives et de machines (SLM) (Winterthur, Suíça) e foi instalado na central em 1927 (Figura 1).

Este motor de ferro fundido, apresentava vestígios de pintura, embora esta fosse pouco visível. Estas máquinas eram pintadas por duas razões: proteger o metal da corrosão e melhorar a sua aparência estética. O metal, quando exposto ao meio ambiente, fica sujeito a um processo de corrosão que leva à formação de produtos de corrosão na sua superfície, os quais podem acabar por cobrir toda a área pintada. O motor estava inactivo desde o momento em que deixou de ser utilizado. O objectivo dos responsáveis pela sua preservação era conservar a superfície e recuperar o máximo de informação possível sobre o uso do motor.

Com base neste objectivo, começou-se por fazer uma observação geral do motor, registando-se as principais alterações visíveis resultantes da corrosão. Em seguida, foi realizada uma análise mais pormenorizada para identificar e caracterizar os materiais (metal e pintura), utilizando técnicas de análise como a espectroscopia de fluorescência de raios-X e a espectroscopia Raman. Estas técnicas permitiram identificar, entre outros, os pigmentos utilizados na pintura. Através desta análise, foram identificados o azul da Prússia, o vermelho de toluidina e o negro de carvão, todos pigmentos típicos da época de construção do motor, o que sugere a não substituição da pintura original. Esta hipótese foi confirmada pela descoberta de um pó preto numa área onde a pintura do motor se tinha destacado. A presença deste pó pode resultar de depósitos formados durante o funcionamento do motor, possivelmente originados pela combustão incompleta de hidrocarbonetos, que ocorre a temperaturas superiores a 350 ºC [2]. Esta evidência indica que o motor operou a temperaturas elevadas durante um longo período e que a pintura não foi substituída após o motor ter sido desativado.

Todas estas evidências são importantes não apenas do ponto de vista histórico, fornecendo informações complementares às disponíveis noutras fontes (como documentos, manuais de funcionamento, etc.), mas também pela sua relevância para a preservação do objeto.

As informações recolhidas durante o exame e análise do motor foram fundamentais para definir a metodologia de conservação. Surgiu, então, a questão: como remover os produtos de corrosão que se formaram sobre a pintura sem interferir ou eliminar os revestimentos? Neste caso, foi necessário selecionar uma metodologia que permitisse realizar a limpeza de forma controlada, mas que fosse, ao mesmo tempo, adequada à grande dimensão do motor. Para tal, recorreu-se a uma técnica de limpeza pouco comum, que utiliza a projeção de partículas sólidas de CO2. Esta técnica, considerada sustentável e amiga do ambiente, permitiu não só preservar a pintura, mas também revelar marcas de uso que estavam ocultas pela corrosão do metal (Figuras 2 e 3). Estas marcas são importantes para a história do uso do motor, e por isso foram preservadas durante o processo de conservação.

Motor a diesel instalado na central eléctrica da Levada de Tomar. Pormenor antes (a) e depois (b) da limpeza com a técnica de projecção de CO2, revelando o revestimento azul e as marcas de utilização efectuadas no revestimento que estavam ocultas pela corrosão (Fotografias: Matthias Tissot).

Entre o desafio de conservar o material e preservar a informação inerente à materialidade dos objetos, a conservação e restauro do património industrial revela-se um campo fascinante, onde história e ciência se entrelaçam na prática. É um mundo vasto a explorar, repleto de oportunidades para descobrir, preservar e valorizar o património industrial.

(A autora não adopta o novo Acordo Ortográfico).

Foto de abertura:

Motor diesel de alta compressão de três cilindros (SLM) de 1927 da Central Eléctrica da Levada de Tomar, Portugal (Fotografias: Matthias Tissot).

Bibliografia

[1] FILIPE, Graça – A Levada de Tomar singular conjunto arquitectónico, tecnológico e industrial do património cultural. Monumentos: revista semestral de edifícios e monumentos. Lisboa: IHRU, N.º 37 (Novembro 2019), pp. 188-197.

[2] TISSOT, Isabel, ALVES, Bento Ottone, SILVA, Tiago, NOGUEIRA, Frederico, MANSO, Marto -In full swing: Analytical strategies for the conservation assessment of operating Industrial Heritage machinery. Journal of Cultural Heritage, N.º 66, (2024), pp. 398-406, https://doi.org/10.1016/j.culher.2023.12.004

Agradecimentos

Archeofactu; Projecto IH4Future (PTDC/FIS-AQM/30292/2017) e Projecto plurianual atribuído pela Fundação para a Ciência e Tecnologia à unidade de investigação LIBPhys-UNL (UIDB/04559/2020).

(*) Conservadora-restauradora e investigadora do LIBPhys-UNL e do HTC. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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