Na primeira pessoa: 10 Dias na “Selva de Calais”

João Vilaça aceitou o desafio de ir para França fazer voluntariado junto de emigrantes e refugiados que tentam chegar ao Reino Unido.

Por João Vilaça

Tinha acabado o estágio do Mestrado em Economia e Gestão Internacional quando uma grande amiga, há anos nestas andanças, me convidou para ir com ela, a irmã e a mãe ajudar imigrantes e refugiados na famosa “Selva de Calais”.

Calais é a cidade francesa mais próxima do Reino Unido, onde chegam há anos imigrantes que fogem de países em guerra. A maioria tem por objetivo atravessar o Canal da Mancha e entrar em Inglaterra.

 

Enquanto não conseguem, vivem em acampamentos improvisados, em condições desumanas. Chamam-lhes a “Selva de Calais”. Uma boa parte do espaço foi destruído pelas autoridades, que pegaram fogo controlado às barracas (foto de abertura). Outra parte, onde estive, resiste.

Algo assombrado pela informação que me chegava pelos media (hoje vejo que distorcida e instigadora de ódio) decidi partir, com vontade de ver com os meus olhos a realidade.

 

Confesso que, durante as 24 horas da viagem, pensamentos pessimistas me sobressaltaram. Imaginei-me no meio de trocas de tiros entre polícia, receei ser assaltado ou agredido por habitantes do campo. Pensamentos precipitados e equivocados, como perceberia ao chegar.

Não fui logo para o campo de refugiados. No primeiro dia, estive num pequeno armazém com o número 56 escrito à mão, um local de trabalho abençoado. Ajudei a empacotar, separar e registar roupa, sapatos, colchões, sacos-cama, junto de voluntários de todas as cores e feitios (na sua maior parte ingleses). Reinava um espírito de entreajuda. Percebi facilmente a alegria que se respirava no pó vindo de caixotes sem fim e de roupas doadas que pairavam há anos em cabides por esse mundo fora.

 

No dia seguinte, guiado por uma (agora) amiga de origem inglesa, percorri de carro o caminho do armazém até ao campo de refugiados. Aí chegado, a tranquilidade dos “moradores” contrastava com a minha ansiedade, receios, com o meu estado de alerta para um movimento suspeito.

Por cada abrigo que passávamos, as pessoas saudavam-nos e diziam sorrindo “Hello my friend.” Baixei a guarda. No ponto de distribuição afegão (no acampamento as pessoas estão agrupadas por nacionalidade: eritreus, sudaneses, sírios, paquistaneses), outra receção calorosa por parte de emigrantes que, ordeiramente, nos ajudaram a retirar o material para doação que havíamos transportado.

 

Fazer voluntariado é também dialogar, conviver, ouvir. É, por exemplo, sentarmo-nos à mesa com estas pessoas e ficarmos embasbacado a ouvir histórias mirabolantes de sobrevivência – as viagens de barco, tão distantes quando vistas na televisão, soam tão reais contadas por quem as viveu.

Fazer voluntariado é perceber que a palavra “resiliência” pode ganhar um significado que não imaginávamos.

Posso contar-vos a história de Hojatullah, um paquistanês com formação em medicina dentária, que fez a viagem a pé desde Islamabad, por entre maus tratos de cada vez que era detido ao atravessar uma fronteira. Tem 24 anos, a minha idade! Ou de Abdel, um sudanês de Darfur a quem o pai deu três mil euros e expulsou de casa, para impedir que, como tinha acontecido com familiares e amigos próximos, morresse num ataque da milícia árabe local.

 

Em Calais, conheci seres humanos comuns, gente que não esperava viver o que está a viver, gente que tinha a sua vida normal – estudava, trabalhava, tinha a sua família. Apesar do que a vida lhes reservou, são pessoas extremamente agradecidas, capazes de gestos como o de construir uma estrada no meio da lama para a nossa carrinha não ficar atolada aquando da distribuição – chamaram-lhe “Fran Road”, o nome da voluntária coordenadora!

Nos dez dias que passei em Calais (na foto acima, estou à esquerda, de vermelho), contava as horas para a distribuição. Queria estar no campo com aquela gente boa, calorosa, capaz de criar tanto com tão pouco. No meio de barracas, acreditam que os sudaneses até montaram uma galeria de arte no acampamento?

 

Estar em Calais foi uma lição de vida. Hoje, duas semanas depois de ter voltado, penso “mas afinal quais são os meus problemas?”.

Em Calais percebi o quão pouco agradecido sou por todas as oportunidades que tive e tenho. Voltei para a minha cidade, Braga, mas os meus pensamentos continuam lá. Com as pessoas que conheci e que, apesar de tudo, preservam a capacidade de olhar o futuro com otimismo.

Questiono-me porque nós, europeus, recusamos ter pessoas como estas, adaptáveis, lutadoras, flexíveis, qualificadas, resilientes, a contribuir para a nossa economia.

Sei que o mundo em que vivemos é um lugar confuso, controverso, mas certamente merecedor de ser visto e vivenciado. Hoje, tenho noção do mundo em que vivo. E sinto vergonha. Vergonha pela forma como, enquanto cidadãos europeus – a viver em sociedades que consideramos desenvolvidas, gabando-nos de valores como a Igualdade, Liberdade e Fraternidade – recebemos estas pessoas em condições miseráveis.

Se eles sobreviveram a tanto com tão pouco, será que nós, com o que temos, não podemos fazer mais?

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