A oposição ao regime em vésperas do 25 de Abril: a “aurora” de um golpe de Estado
Apesar da maior constância da sociedade civil na luta contra o Estado Novo, acabaria por ser a classe militar a libertar o país de uma ditadura com 48 anos.
Por António Amaral *
Na alvorada do “dia inicial inteiro e limpo” [o 25 de Abril de 1974] – nas palavras translúcidas de Sophia de Mello Breyner – tornava-se difícil ao Estado Novo (1933-1974) disfarçar o desgaste em que vivia. A oposição ao regime ditatorial, que durava há quase meio século, não parava de crescer. Era feita por homens e mulheres, de diferentes ideologias, inconformados com um Estado que privava os cidadãos e as cidadãs dos seus mais elementares direitos.
Nesse movimento de contestação que vai em crescendo, é possível identificar dois polos centrais de oposição ao regime: o civil e o militar, que caraterizaremos ao longo deste artigo.
No que concerne à oposição proveniente da sociedade civil, ela começou a manifestar-se logo desde os tempos fundacionais do Estado Novo. Entre 1928 e 1933, o “reviralho” (nome dado à oposição republicana liberal e democrata) e o anarco-sindicalismo condenaram – com recurso a barricadas, propaganda e luta armada – o autoritarismo conservador e antidemocrático que tinha tomado conta do Estado português, com lógicas político-económicas que configuravam uma nova modalidade de fascismo.
Após o fim da década de trinta, o Partido Comunista Português, mergulhado na clandestinidade, e organizações unitárias, como o MUNFAF e o MUD, que englobavam comunistas, republicanos, democratas liberais, entre outros, assumem as rédeas da luta oposicionista. Participam ativamente em diversas frentes de combate ao Estado Novo, como as eleições presidenciais de 1958, apoiando a candidatura do general Humberto Delgado.
A “Primavera” que não o foi…
Com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, o Estado Novo parecia dar sinais de abertura política, social e económica para que uma transição fosse empreendida. Uma esperança vã… A chamada “Primavera Marcelista” (como foi denominado o período inicial de Marcelo Caetano à frente do governo) não traria a reforma esperada. Tudo não passava, afinal, de uma retórica governativa, bem sintetizada no slogan lançado pelo novo presidente do Governo: “evolução na continuidade”.
Às expectativas falhadas, geradas em torno da figura de Marcelo Caetano, soma-se em 1973 uma crise do capitalismo ocidental, com a inflação a assumir índices idênticos ou superiores aos da II Guerra Mundial. A oposição civil aumenta e começa a consciencializar-se de que o derrube do regime é a única solução viável face ao paradigma vigente.
Surgem então novos partidos, organizações e movimentos sociais à esquerda do PCP (e em rotura com este), que materializam a crise política, económica e social do país em processos de radicalização ideológica e de luta. Para eles, o principal foco de atuação é o combate pelo fim da guerra nas antigas colónias portuguesas. Neste ponto, é também de mencionar a ação dos católicos progressistas, denunciando os problemas éticos, morais e políticos da guerra colonial.
A realização do III Congresso Democrático em Aveiro, em abril de 1973, é sintomática deste contexto efervescente, em que a rotura se afigurava cada vez mais como um imperativo. Aí, unem-se várias tendências política-ideológicas para discutir os problemas nacionais. Reafirma-se a necessidade de combater o colonialismo e de conquistar as liberdades democráticas. Está dado o “mote” da oposição civil até ao 25 de Abril de 1974.
Um movimento que cresce
No campo militar, a ação oposicionista esteve muito condicionada. As Forças Armadas (FA), enquanto componente constitutiva do aparelho de Estado, foram desde muito cedo manietadas por Oliveira Salazar, que via nelas um garante fundamental ao seu exercício executivo. Nas FA, a ditadura fazia-se sentir pelos generais e demais quadros superiores, que eram da confiança exclusiva do chefe do Governo. Não foram raros os saneamentos militares executados a mando de Salazar para retirar eventuais membros que se pudessem opor (e opuseram…) aos interesses do regime.
Ainda assim, em 1959 e 1961, dão-se o golpe da Sé e o golpe Botelho Moniz (ou a “Abrilada”), respetivamente, protagonizados por militares e alguns civis (principalmente no primeiro) contra o regime salazarista.
Ainda que falhadas quanto aos seus objetivos, estas duas revoltas representaram a presença da classe militar na oposição ao regime. Isto é, apesar da sua importância nuclear para a manutenção da ditadura, as FA foram também esboçando, ao longo dos tempos, sinais de descontentamento face às políticas do Estado Novo. Em vésperas do 25 de Abril de 1974, os problemas do regime com as classes militares, principalmente as subalternas, pareciam insanáveis.
A revolta dos Capitães
A guerra colonial transformou-se num obstáculo inultrapassável. Significava um problema a vários níveis, que fazia crescer o descontentamento da população: económico, pois a manutenção do conflito implicava enormes despesas para o Estado português; social, pelo destacamento militar a que a guerra obrigava, entre FA e civis; e político, pelo desgaste a que o regime se submetia ao não resolver do conflito sem o “uso das armas” (neste contexto, o general Spínola publica “Portugal e o Futuro”, defendendo uma solução política – e não militar – para a guerra colonial).
Conscientes de que o regime não procuraria essa solução política para o conflito nas colónias (iniciado em 1961) e que, por isso, o fim da guerra significaria o fim do regime, os militares organizam-se – especialmente o exército, os capitães pertencentes à média hierarquia da tropa – e preparam um golpe de Estado a fim de derrubar o regime.
Essa organização oposicionista materializa-se no Movimento das Forças Armadas (MFA), já em 1974. Seja antes do 25 de Abril – quando o MFA ultimava o golpe e os objetivos do levantamento militar -, seja no próprio dia do golpe de Estado, o regime revela-se incapaz de deter o gesto do Movimento das Forças Armadas. O Estado Novo é derrubado a 25 de Abril de 1974.
O fim dos “vampiros”
Apesar da oposição militar ter tido menos “constância” do que a oposição civil, acabaria por ser a classe militar a libertar o país de uma ditadura vigente há 48 anos.
Não obstante, a ação continuada da oposição civil – em partidos, organizações, movimentos sociais, entre outros – foi determinante. Concebeu uma atuação e cultura democráticas e antifascistas consistentes, que em muito influenciaram o gesto revolucionário dos militares. Em suma, os dois campos não se dissociam um do outro.
Pela poetisa começámos, com o cantor finalizamos. Desta forma, pela voz de Zeca Afonso, “no céu cinzento sob o astro mudo”, que os “vampiros” calcorreavam para “chupar o sangue fresco da manada”, houve sempre quem partisse “à procura da manhã clara” que, na esperança e na luta das diversas oposições ao regime, deu “vida na noite inteira”. Os “filhos da madrugada” foram-no também do novo dia.
Foto de abertura do artigo: Alfredo Cunha (1974), “A Revolução dos Cravos: a PSP coloca-se à disposição da Escola Prática de Cavalaria”, Fundação Mário Soares/Alfredo Cunha
(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.