Mocidade Portuguesa. Fotógrafo: Estúdio Horácio Novais. Fotografia sem data. Biblioteca de Arte Calouste Gulbenkian/Flickr

“O botas”, o “corta-fitas”, “a pevide”: palavras feitas armas que resistiram à censura do Estado Novo

O discurso foi alvo da mais dura repressão antes do 25 de Abril, mas algumas palavras funcionaram como verdadeiros códigos de resistência.

Por Maria Miguel Fresco*

Se, durante o Estado Novo, foi difícil às palavras escritas escapar à censura, o mesmo não aconteceu com as expressões orais. Proferidas num ambiente familiar – entre amigos, parentes ou conhecidos -, as palavras ditas foram, não raras vezes, incontroláveis pelo regime, podendo adquirir configurações tão diversas como canções, piadas, insultos dirigidos ao governo ou a personalidades concretas. Independentemente da tipologia, refletiam o mal-estar quotidiano das populações, e, tal como veremos, assumiam-se como aspetos da resistência simbólica.

Potente instrumento político, a censura limita a discussão de ideias e reprime tudo aquilo que não se enquadra nos ditames do regime. No Estado Novo, temas associados à contestação política, social e à denúncia das condições materiais eram proibidos. O regime impunha uma dominação prepotente da língua, sobretudo aos vocábulos vinculados à sua ideologia contrária – o comunismo.

Por exemplo, “ser do Benfica” hoje e naquele período não significava o mesmo. Devido à cor vermelha (aliás, cor que deveria desaparecer do léxico para dar lugar ao encarnado), a expressão era associada, em certas localidades, a ser do Partido Comunista Português ou perfilhar o seu ideário.

A omnipresença da violência

O ambiente repressivo e a violência imposta pelo regime desencorajava os indivíduos a caricaturar e a imprimir num suporte físico as suas opiniões, mas proferir abertamente determinadas ideias era igualmente perigoso. A presença de informadores por todo o território nacional – os chamados “bufos”, que até podiam não se dedicar exclusivamente a essa tarefa – auxiliava a perpetuação da ordem e disciplina.

É importante notar que em determinados meios sociais existia uma total ausência de discussão política entre amigos e família. Particularmente as mulheres eram acometidas a uma herança obediente e castradora, transmitida de geração em geração, que as excluía do debate de ideias.

Assim, as motivações dos indivíduos que proferiam expressões descontentes não podem ser consideradas de ânimo leve, nem como uma mera expressão do “quotidiano” popular, em que se ridiculariza aqueles que estão no poder. Prendiam-se, antes de mais, com conotações políticas vincadas. E, neste processo de resistência, o recurso ao humor foi um importante instrumento. A própria descompostura a ele associada foi um dos elementos cujo regime tratou de reprimir e limitar.

Em busca dessas manifestações orais!

Tendo em vista o reconhecimento das expressões usadas durante o Estado Novo e que se assumiram como códigos de resistência, realizou-se um conjunto de entrevistas, recorrendo a metodologias da história oral. Os entrevistados foram estimulados a transmitir as expressões que ouviram, ou até proferiram, durante o regime. A história oral permitiu suprimir a carência verificada nas fontes escritas.

As expressões encontradas visavam, maioritariamente, as estruturas e personalidades do regime, estando frequentemente imbuídas de humor numa clara estratégia de ridicularização das figuras mais proeminentes.

A António de Oliveira Salazar, político exemplar, aceite como o “mago das finanças” e caracterizado pelos seus pares como “o guia” ou o “educador” (1), contrapõem-se expressões subversivas que dão conta de um ditador irredutível e avarento.

Assim, em parte do imaginário popular, Salazar ficou associado a um epíteto curioso – “o botas”, numa alusão à expressão “bota de elástico”, uma pessoa muito conservadora, que tem um ar rústico, grosseiro e poupado. Outro dos nomes chamado a Salazar era “o Esteves” – não só por ser um apelido comum na língua portuguesa, mas também porque as notícias da época relatavam que “o Senhor Presidente do Conselho esteve ontem em visita a …” (2). Usada ainda nos dias de hoje está a expressão “o salazar” – na tentativa de espelhar o autoritarismo excessivo e a ação implacável do Presidente do Conselho, atribuiu-se o seu apelido a um utensílio culinário, o rapa-tudo ou a espátula. Tal como o objeto, também Salazar rapava tudo, inclusive a liberdade.

Todos estes epítetos e demais quadras de irreverência foram importantes perante um regime que foi, em grande medida, baseado na liderança de um só homem e na imagem construída em torno da sua figura.

Inaugurações: todas e mais algumas…

Por seu lado, Américo Thomaz era conhecido como o “Corta Fitas”, em alusão ao gosto por inaugurar todo o tipo de infraestruturas e marcar presença em vários eventos, até na inauguração das lavandarias do Hotel Sheraton (3).

As estruturas do regime tinham também designações particulares. O “S”, inscrito no cinto que compunha o fardamento da Mocidade Portuguesa, também foi alvo de chacota por parte das massas populares. Para o seu significado emergem diferentes interpretações e tratamentos. De acordo com os ditames oficiais o “S” significaria “servir”, mas a crença popular associava-o à inicial do presidente do Conselho (4). E nem por isso o “S” escapou rapidamente de ser conotado como “S” de serpente ou trocadilhos como “Sou soldado socialista, sem Salazar saber. Se Salazar soubesse, seria sério sarilho.” (5)

Mais ainda: tecendo largas críticas à violência do regime, a PVDE, futura PIDE, era conhecida como “pevide” e os carros em que se deslocavam eram as “viuvinhas”, por serem Volkswagen pretos – numa clara alusão à morbidez da polícia (6).

As formas orais e escritas de resistência ao Estado Novo acentuaram uma divisão da sociedade cada vez mais notória e as contradições de um regime austero e inflexível contrapunha-se a um setor da sociedade resistente.

Foto de abertura: Mocidade Portuguesa. Fotógrafo: Estúdio Horácio Novais. Fotografia sem data. Biblioteca de Arte Calouste Gulbenkian

Referências bibliográficas:

1) PACHECO, Carneiro – O Retrato do Chefe. Lisboa: União Nacional, 1935.

2) Entrevista a Conceição Matos, Lisboa, 29 de dezembro de 2022. Entrevista a Luís Miguel Duarte, Porto, 19 de dezembro de 2022.

3) Entrevista a Maria Emília Brederode dos Santos, Lisboa, 21 de dezembro de 2022.

4) Entrevista a Mário de Araújo, Almada, 30 de dezembro de 2022.

5) Entrevista a Luís Miguel Duarte, Porto, 19 de dezembro de 2022.

6) Entrevista a Maria Emília Brederode dos Santos, Lisboa, 21 de dezembro de 2022.

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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