O início da Guerra Civil de Espanha, 80 anos depois

A mais mortífera guerra civil da Europa Ocidental no século XX saldou-se pela derrota da II República espanhola e a implantação da ditadura franquista.

Por Rui Aballe Vieira (*) – Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa

Em Fevereiro de 1936, uma coligação de partidos de esquerda saiu vencedora das eleições gerais em Espanha. Cinco meses depois, a 18 de Julho, um golpe militar contra o governo de Madrid desencadeou uma guerra civil que duraria três anos (de 1936 a 1939) e terminaria com a vitória das forças sublevadas sob o comando do general Franco (a ditadura franquista duraria de 1939 a 1975). Que antecedentes explicam esta reacção contra um governo saído das urnas?

         

Um agente da Guardia de Asalto (força de segurança que permaneceu fiel ao governo republicano) enfrenta militares sublevados nas ruas de Barcelona, Julho de 1936 | Foto: Agustí Centelles/CDMH (Centro Documental de la Memoria Histórica)

A rebelião foi preparada com antecedência. As primeiras movimentações remontavam a 1931, ano em que foi proclamada a II República espanhola. As elites conservadoras, com as chefias das forças armadas e a alta hierarquia da Igreja Católica à cabeça, opuseram-se desde logo aos esforços modernizadores que o governo republicano procurou implementar em 1931/33. A partir de 1934, conspiradores civis e militares começaram a planear um golpe de estado para travar e reverter as reformas económicas, políticas e sociais (especialmente a reforma agrária) que ameaçavam os seus privilégios e a velha ordem social.

            

Milicianos das organizações sindicais marcham pelas ruas de Barcelona | Foto: Agustí Centelles/CDMH (Centro Documental de la Memoria Histórica)

A derrota das direitas (que não concorreram coligadas) nas eleições de Fevereiro de 1936, face à Frente Popular (coligação composta pela maioria dos partidos de esquerda e centro-esquerda), e a crescente polarização da sociedade espanhola que daí adveio, convenceram os inimigos da República que era chegado o momento de recorrer à força mediante uma rebelião militar. Foi então que um grupo de generais, encabeçados por Emilio Mola, José Sanjurjo e Francisco Franco, decidiu levantar-se em armas contra a legalidade constitucional. O processo conspiratório, posto em marcha na Primavera de 1936, congregou militares da UME (‘Unión Militar Española’, organização clandestina antidemocrática e antirepublicana), carlistas, monárquicos e a extrema-direita fascista.

          

As unidades mais modernas da armada espanhola, os cruzadores “Canarias” e “Baleares” (ambos foram terminados após o início das hostilidades em Ferrol), ficaram em mãos nacionalistas. Os dois navios, ultramodernos à época, eram um formidável recurso, mas nos finais do Verão de 1936 a frota leal ao governo republicano – um couraçado, três cruzadores, dezasseis destroyers e todos os submarinos – superava em muito a dos militares rebeldes, que contavam com um couraçado, um cruzador operacional e um destroyer | Foto: Andrés Gómez

O levantamento militar (‘alzamiento’ em espanhol) arrancou em Marrocos a 17 de Julho de 1936, a pretexto de manobras, tendo-se propagado à maioria das guarnições do exército na península e nos arquipélagos das Baleares e das Canárias no dia seguinte. Menos de uma semana volvida, os rebeldes (também designados como nacionalistas, por se autodenominarem como ‘nacionales’) dominavam uma faixa do norte e centro do território espanhol peninsular (Álava, Navarra, León, Castela, Galiza, metade de Aragão, a zona de Cáceres na Extremadura e, na Andaluzia, as capitais provinciais de Córdova, Granada e Sevilha), as ilhas Canárias e Baleares (com excepção de Minorca) e todo o Protectorado de Marrocos. Nos principais centros urbanos fora das zonas referidas, a rebelião foi sufocada pelas forças de segurança (‘Guardia Civil’ e ‘Guardia de Asalto’) que permaneceram leais, auxiliadas por milícias populares (anarquistas, socialistas e comunistas) às quais tinham sido distribuídas armas. Após os primeiros confrontos, o controlo governamental permanecia firme em duas zonas separadas entre si: uma compreendia as duas maiores cidades de Espanha, Madrid e Barcelona, bem como toda a Catalunha, a zona de Badajoz na Extremadura, o resto da Andaluzia, La Mancha e a costa mediterrânica da Catalunha a Málaga; e outra, isolada, a norte, desenhava-se das Astúrias (excepto a capital, Oviedo) à Biscaia e Guipúscoa.

         

Os bombardeamentos aéreos contra objectivos civis tornaram-se comuns na Guerra Civil de Espanha. Fotografia obtida pela tripulação de um bombardeiro italiano durante uma missão sobre Barcelona (Março de 1938). Distinguem-se as colunas de fumo provocadas pelas explosões das bombas largadas pelos aviões | Foto: Centre d’Història Contemporània de Catalunya

Embora o grosso do tecido industrial (que incluía a indústria metalúrgica e metalomecânica, as minas bascas e asturianas e as indústrias têxteis e químicas da Catalunha) e da população activa tenha permanecido em zonas sob controlo republicano, estas eram menos produtivas do ponto de vista agrícola e pecuário (com excepção da região valenciana). O governo republicano tinha também em seu poder as reservas de ouro do Banco de Espanha. Nas regiões controladas pelos nacionalistas a infraestrutura industrial era mais débil. Compensavam-no com a posse das melhores regiões agrícolas e ganadeiras, que viriam a revelar-se preciosas. Os rebeldes triunfaram em regiões largamente rurais e em algumas capitais de província no interior (que correspondiam de perto às circunscrições onde as candidaturas de direita obtiveram mais votos), tendo fracassado em zonas mais urbanas e modernizadas. Começava assim uma feroz guerra civil que se prolongaria por três anos, durante os quais a população civil sofreu inúmeras privações e uma ferocíssima repressão.

         

A aviação assumiu uma importância fulcral e decidiu o resultado de muitas operações: em Novembro de 1936 os caças fornecidos pela URSS ajudaram os defensores de Madrid a deter os raids aéreos contra a cidade. Na fotografia, um Polikarpov I-16 “Mosca” com pilotos republicanos (1938) | Foto: © David Seymour/Magnum Photos

Em Portugal, a eclosão do estado de guerra no país vizinho estimulou a deriva fascizante no seio do Estado Novo, o regime antidemocrático institucionalizado pela Constituição de 1933, continuador da Ditadura Militar que derrubara a I República em 28 de Maio de 1926. Salazar e as elites políticas e económicas que apoiavam a ditadura concordavam quanto à urgência de garantir a vitória dos nacionalistas espanhóis, enquanto condição essencial para a própria sobrevivência do regime português. O ditador português, influenciado pelas informações que lhe chegavam de Espanha, autorizou todas as acções que, a partir do território nacional, pudessem apressar o fim do governo republicano e a sua substituição por um regime ideologicamente compatível com o de Lisboa.

         

A aviação nacionalista dispunha de capacidade ofensiva muito superior à sua congénere e adversária republicana. Três bombardeiros Savoia-Marchetti S.79 regressam à sua base nas Baleares (1938) | Foto: Giancarlo Garello

Embora confinada às fronteiras espanholas, a guerra teve ampla repercussão internacional. A URSS, e em muito menor grau o México e a Checoslováquia, foram os únicos países a fornecer armas à República espanhola. O fluxo contínuo de armamento e homens proporcionado pela Itália fascista e pela Alemanha nazi revelou-se essencial para o êxito do esforço de guerra rebelde (a 27 de Julho de 1936 chegavam a Espanha os primeiros aviões de combate italianos, enviados por Mussolini para reforço da cobertura aérea dos rebeldes).

          

A causa republicana foi abraçada por artistas e intelectuais de todo o mundo. O escritor Ernest Hemingway com soldados em Teruel (Dezembro de 1937). Foto: Robert Capa © International Center of Photography

Do ponto de vista militar, a Guerra Civil Espanhola foi um conflito arcaico, amiúde estático. A guerra moderna, tecnológica, travou-se no ar, onde a crescente superioridade ofensiva dos nacionalistas fez com que estes mantivessem a iniciativa de 1937 em diante. Foi também a partir dos ares que se abateu sobre a população civil de muitos centros urbanos da zona republicana o terror dos bombardeamentos aéreos, pela mão da ‘Legión’ Condor alemã e da ‘Aviazione Legionaria’ italiana: a cidade basca de Guernica, arrasada pelos bombardeiros alemães e italianos às ordens de Franco, é o caso mais conhecido, mas Madrid, a partir de Outubro de 1936, e depois Barcelona, Valencia e outras cidades do litoral mediterrânico, seriam também visadas pelas esquadrilhas rebeldes até ao final da guerra.

         

Refugiados republicanos a caminho do exílio (Março de 1939) | Foto: Robert Capa © International Center of Photography

Uma vez ultrapassada a fase de diretório da Junta de Defensa Nacional, máximo órgão estatal na zona rebelde, depressa emergiria o sistema de organização que caracterizaria a ditadura franquista nas décadas subsequentes, que tinha no Exército, na Igreja e, a partir de 1937, na Falange unificada, os seus três esteios principais. À medida que o conflito evoluiu, o regime franquista incorporou elementos comuns aos seus aliados alemães e italianos: um partido único, a saudação romana, a retórica imperial e corporativa e a exaltação da figura do chefe, o ‘Caudillo’.

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História – do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas e Ricardo Castro.

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