Os impactos socioeconómicos da crise dos anos 30 em Portugal

E a forma como ela abriu caminho a um regime autoritário e a ideias nacionalistas.

Por Inês José e Leonardo Aboim Pires (*)

Os loucos anos 20 ficaram caracterizados por um modo de viver acelerado, que teve nos EUA o seu ex-libris. Esse modo de viver refletiu-se desde logo no aumento do consumo, sobretudo de bens de consumo duráveis, como o carro ou os eletrodomésticos.

Como os salários não acompanharam a produção, o consumo foi alimentado através do crédito fácil, dinâmica à qual se somou o grande aumento de investimentos no mercado de ações. O poder de compra artificial – conseguido através do endividamento – e o facto da procura não conseguir acompanhar a produção depressa desembocaram num cenário de superprodução e especulação.

A “bolha” especulativa foi travada em outubro de 1929, com o crash da bolsa de valores de Wall Street. Seguiu-se uma crise financeira que rapidamente se tornou económica: as dificuldades no crédito levaram a que as empresas deixassem de se conseguir financiar, entrando em falência, o que, por sua vez, levou ao desemprego em massa. Não tendo onde trabalhar, a população deixou de ter poder de compra, consumindo menos.

A crise rapidamente contagiou a Europa. No entanto, os seus efeitos não se manifestaram ao mesmo tempo nem com a mesma intensidade em todos os países, nomeadamente em Portugal. Na verdade, e como procuraram demonstrar os historiadores Fernando Rosas, José Maria Brandão de Brito, Sacuntala de Miranda, Maria Fernanda Rollo, José Luís Cardoso e Pedro Lains, a economia portuguesa conseguiu “resguardar-se” dos piores efeitos da Grande Depressão. Esta relativa brandura e a sua receção tardia prende-se com o “nível de isolamento da economia portuguesa relativamente ao exterior, no que diz respeito quer à agricultura, quer à indústria, quer às finanças” (1).

Entre os vários fatores apontados para o país ter atravessado a crise dessa forma contam-se o facto de a economia portuguesa ser “relativamente pouco aberta ao exterior” (2), uma agricultura virada sobretudo para o mercado interno, ainda que alguns setores vivessem “à sombra” das exportações; uma indústria que não colocava os seus produtos de forma significativa no mercado externo e uma presença diminuta do capital estrangeiro no tecido produtivo português (3). A estes fatores de ordem estrutural somaram-se outros de ordem conjuntural, entre os quais a política financeira do então Ministro das Finanças e futuro Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, o equilíbrio do Orçamento do Estado, o que permitiu o investimento em medidas para absorver o desemprego e dinamizar a economia e a estabilização da moeda (4).

As principais consequências da recessão incidiram, essencialmente, nas tradicionais exportações portuguesas de origem agroalimentar e florestal: vinho, conservas de peixe, frutas e cortiça em bruto. As perturbações na circulação global de mercadorias e no comércio externo acabaram por levar a uma quebra na importação destes produtos no principal parceiro comercial, a Grã-Bretanha, embora também as exportações portuguesas para a Alemanha tenham sofrido sérios reveses (5).

De uma forma mais circunscrita mas não atingindo as proporções dos outros países afetados pela crise, o desemprego foi uma realidade visível na sociedade portuguesa no início dos anos 30. Esta situação sentiu-se, especialmente, nos meios rurais. A diminuição dos fluxos migratórios também contribuiu para que um grande número de lavradores ficasse nas suas terras de origem, originando um número excedentário de mão-de-obra nos campos. De acordo com um inquérito realizado em agosto de 1931, o desemprego rural era muito acentuado nas regiões das grandes propriedades, isto é, Alentejo. De forma a conseguir encontrar soluções para tal problema, o governo criou o chamado Comissariado do Desemprego, em 1932, para conseguir garantir condições de emprego a estas populações, sobretudo através de obras públicas e os chamados melhoramentos rurais, mas também prover alguma assistência social, como a distribuição de refeições.

Um dos resultados da Grande Depressão foi a emergência do discurso nacionalista e de enunciados autárcicos, que foi, aliás, uma característica transversal aos regimes autoritários emergentes nesta altura. Em Portugal, embora esse discurso já se fizesse sentir, foi alimentado pela observação dos efeitos da crise. É neste contexto que a ideia de autossuficiência se torna cada vez mais presente, sendo constante a divulgação do slogan «Portugueses, Patriotas, Preferi Produtos Portugueses!», de forma a incutir nos consumidores a ideia de quão benéfico era a compra de produtos de origem nacional. Também ainda no domínio das ideias e das práticas económicas, o corporativismo surge neste período como forma de regular preços e disciplinar a concorrência, através de várias instituições criadas pelo Estado, como os grémios ou os organismos de coordenação económica.

Importa salientar que, em contracorrente ao discurso oficial, apologista de uma aposta na agricultura, a crise propiciou as condições para uma defesa cada vez maior da importância de industrializar o país. Assim, várias iniciativas como o I Congresso Nacional de Engenharia, em 1931, e o I Congresso da Indústria, em 1933, são marcos significativos neste caminho que só se converteria na política oficial, de forma plena, durante e após a II Guerra Mundial (6).

Em síntese, os problemas que assolaram as principais economias ocidentais na viragem dos anos 20 para os anos 30 conheceram, em Portugal, as suas variantes. Embora os efeitos da Grande Depressão não tenham deixado de se fazer sentir no nosso país, os fatores estruturais e conjunturais enunciados “blindaram” a economia portuguesa a impactos mais nefastos. No entanto, a crise criou as condições para uma maior afirmação do regime autoritário e das ideias baseadas no nacionalismo económico e na autarcia.

(1) Pedro Lains, “Portugal e a Grande Depressão” in História, ano XXI, nº 18, outubro de 1999, p. 30.
(2) Fernando Rosas, “A crise de 1929 e os seus efeitos económicos na sociedade portuguesa” in O Estado Novo das Origens ao Fim da Autarcia (1926-1959), Lisboa, Fragmentos, 1987, p. 260.
(3) Fernando Rosas, O Estado Novo nos anos trinta (1928-1938), Lisboa, Editorial Estampa, 1986, pp. 59-65.
(4) Nuno Valério, As finanças públicas portuguesas entre as duas guerras mundiais, Lisboa, Edições Cosmos, 1994.
(5) Sacuntala de Miranda, Portugal: o círculo vicioso da dependência (1890-1939), Lisboa, Teorema, 1991.
(6) Maria Fernanda Rollo, “Memória do I Congresso Nacional de Engenharia (1931)” in Revista Ingenium, n.º 120, Novembro/Dezembro de 2010 e disponível em: https://www.ordemengenheiros.pt/pt/centro-de-informacao/dossiers/historias-da-engenharia/memoria-do-i-congresso-nacional-de-engenharia-1931/

Legendas das Fotografias

1 – (imagem de abertura à esquerda) Cartaz de propaganda da Associação Industrial Portuguesa, apelando ao consumo de produtos portugueses. Fonte: Indústria Portuguesa: revista da Associação Industrial Portuguesa, 6º ano, nº 59, janeiro de 1933.

2 – (imagem de abertura à direita) Cartaz alusivo à Semana do Trabalho Nacional, realizada entre 9 e 14 de novembro de 1931. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal.

3 – Migrant Mother, de Dorothea Lange (1936). A fotografia tornou-se uma referência da Grande Depressão.

(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo, Luísa Metelo Seixas, Ricardo Castro e Susana Domingues.

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