Uma Diocese desafiadora da ‘ordem estabelecida’

A Diocese de Setúbal nasceu já depois do 25 de Abril. A sua história faz-se da proximidade aos operários e de um enraizamento profundo no meio onde floresceu.

Por João Francisco Pereira*

De certeza que já ouviste falar de Setúbal pelas suas praias ou pelo seu prato mais típico: o choco frito. Mas será que conheces alguma das muitas fábricas de conservas que ao longo do século XX surgiram naquela península? E o que sabes sobre as condições de vida de uma boa parte da população que dependia quase em exclusivo do que o mar dava? Já agora, conheces a importância que as conservas tinham nesta altura para o nosso país? (LINK: https://jornalissimo.com/historia/na-aurora-do-condicionamento-industrial-no-sector-das-conservas-de-peixe-portuguesas-1927-1928/)

O nascimento da Diocese de Setúbal não pode ser desligado desta realidade. Foi ela que levou a Igreja, no final do século passado, a dar mais atenção a esta região. Já lá vamos. Antes, importa ver como a organização da Igreja é semelhante à organização de um Estado.

Repara: as relações sociais criam a necessidade de uma administração para que essas mesmas relações não só se conservem mas também se reproduzam (Charles Bonnin – Abrégé des principes d’administration). Na nossa realidade isso traduz-se de várias formas, desde logo pela existência do Estado que dita uma divisão territorial para que essa administração seja mais apropriada. A Igreja Católica, constituída por todos aqueles que receberam o batismo, é também ela geradora de laços sociais e, portanto, também necessitada de uma administração.

Em Portugal, mas não exclusivamente, parece existir um mimetismo entre a administração civil e eclesiástica. Se na primeira temos distritos, concelhos e freguesias, na segunda temos dioceses, vigararias e paróquias. Isto não significa que estas circunscrições coincidam perfeitamente, mas às vezes acontece. Em ambos os casos, este desdobramento pretende ser uma aproximação às populações.

Paróquias sem capacidade de resposta e a orientação de um Concílio

O distrito de Setúbal existe desde 1926. O desejo de criar uma diocese na região remonta, pelo menos, ao ano seguinte, 1927. Esse desígnio surge com alguma frequência nos periódicos regionais. No entanto, apenas nos anos 60, a Igreja Católica começa a dar forma ao projeto. E a diocese de Setúbal só surge em 1975, sendo uma das últimas a ser criadas no país.

O primeiro motivo que levou a Igreja a dar início a este processo foi o grande desenvolvimento económico e social da península de Setúbal. Graças a ele, convergiram para aquele território populações provindas de outras geografias nacionais, em busca de trabalho e melhores condições de vida. Essa afluência foi-se tornando mais expressiva na segunda metade do século XX, de tal modo que as estruturas paroquiais existentes deixaram de ter capacidade para enquadrar essas populações.

Por outro lado, o Concílio Vaticano II deu orientações para que em toda a Igreja fossem revistos e adaptados os limites territoriais das dioceses, agrupando as muito pequenas e dividindo as que fossem excessivamente extensas, de preferência a fazer coincidir os limites da administração religiosa com os limites da administração civil.

Assim, na segunda metade dos anos sessenta, a diocese de Lisboa – que se estendia das margens do rio Sado até à Serra de Tomar, abrangendo partes significativas dos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal – decide entrar num processo de reorganização interna. Um dos objetivos imediatos era a obtenção de uma maior eficácia da ação da Igreja, mas a médio prazo pretendia-se que a partir da diocese de Lisboa viessem a ser criadas as dioceses de Setúbal e Santarém. Precisamente neste encalce foram criadas as “regiões pastorais” de Setúbal e Santarém. Isso permitiu que aquelas regiões fossem dinamizadas de uma forma mais específica.

Mapa onde aparecem sombreadas as regiões que integravam o Patriarcado de Lisboa antes de 1975, a Região Pastoral de Setúbal, que não coincide com o distrito, está sombreada a amarelo.

Uma Igreja próxima dos operários e da população

Na Região Pastoral de Setúbal foi colocado, como representante do Patriarca de Lisboa, o Vigário Episcopal Cónego João Alves em 1966. Para este sacerdote tinha-se tornado claro que a península de Setúbal precisava de uma ação diferente por parte da Igreja. Por esse motivo, procurou perceber quais eram as principais dinâmicas daquela sociedade.

Uma característica marcante era o grande número de pessoas que trabalhavam em fábricas. Sendo a região de Setúbal caracterizada como zona operária, procurou-se que a Igreja aí presente tivesse a mesma marca. Assim, foram para lá convidadas comunidades religiosas, masculinas e femininas, que tivessem uma presença mais próxima das populações, vivendo, trabalhando e partilhando a vida com essas comunidades onde se queriam inserir.

Com o passar dos anos e a ação do Cónego João Alves – no sentido de “dar forma” à futura diocese de Setúbal, profundamente enraizada no meio onde iria nascer -, foram sendo preparados estudos (particularmente a partir do final dos anos 60), – que ajudaram a estruturar essa aspiração. Houve algumas tensões dentro da Igreja Católica em Portugal. O plano inicial previa que a futura diocese abrangesse todo o distrito de Setúbal. Mas os bispos de Évora e Beja não estavam de acordo em ceder parte do seu território para que isso acontecesse. Tal levou a que os planos fossem reformulados e só nos anos setenta a diocese de Setúbal estivesse pronta a ser criada.

16 de Julho de 1975 foi o dia em que a Diocese de Setúbal nasceu. Ou seja, depois da Revolução dos Cravos e em pleno ‘Verão Quente’, que bem se fez sentir em Setúbal. Talvez por este motivo a Santa Sé tenha achado que era o momento oportuno de a Igreja se afirmar naquele território. Criando a Diocese, mas também nomeando para ela um bispo descomprometido com o regime anterior.

Primeira página do jornal Notícias de Setúbal (2-11-1975) que relata as primeiras palavras do novo bispo à sua diocese.

D. Manuel Martins foi o primeiro bispo de Setúbal. O trabalho que desenvolveu entre 1975 e 1998 fez jus à ideia de criar uma Diocese próxima dos operários e das populações – denunciou a situação de precariedade e de pobreza em que viviam muitos dos trabalhadores da península de Setúbal e suas famílias, a sua voz ergueu-se contra a exploração da mão-de-obra infantil e contra a fome que via grassar à sua volta. A firmeza das suas posições a favor de uma sociedade mais justa fez com que ficasse, para a história, como “o bispo vermelho”.

A D. Manuel Martins, como bispo de uma Diocese tão desafiadora da “ordem estabelecida”, seguiu-se D. Gilberto dos Reis Canavarro e D. José Ornelas. Desde setembro deste ano, o bispo de Setúbal é D. Américo Aguiar, um nome familiar, pelo menos a quem seguiu de perto a Jornada Mundial da Juventude. Foi ele o principal rosto da organização em Portugal do evento que contou com a presença do Papa Francisco e milhares de jovens fiéis de todo o mundo.

Foto de abertura:
Igreja de Santa Maria em Setúbal, elevada a Catedral da diocese de Setúbal em 1975.

(*) Investigador do HTC-CFE, NOVA FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.