Como é a vida dos jovens refugiados que viajam sozinhos até Portugal?

A responsável pela Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas, Dora Estoura, abre-nos uma janela para o mundo destes menores de idade.

Custa a crer, mas os dados são fidedignos – constam de um estudo da agência das Nações Unidas que promove os direitos das crianças. Segundo o relatório ‘Uprooted: The growing crisis for refugee and migrant children’, da UNICEF, há cada vez mais crianças e jovens refugiados a viajarem sozinhos, sem a companhia de nenhum adulto. Foram 100 mil em 2015 (três vezes mais do que no ano anterior) e requereram ajuda em mais de 78 países. Portugal foi um deles.

Desde outubro de 2012 existe, em Lisboa, uma Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas (CACR) onde, neste momento, vivem 23 menores de idade, oriundos de países como Guiné-Conacri, Mali, Paquistão, Congo, Afeganistão ou Ucrânia. A criança mais nova que passou pela Casa até hoje tinha 8 anos apenas. Chegou acompanhada por familiares também eles menores de idade (de 12 e 16 anos).

Conversámos com Dora Estoura, a assistente social responsável por esta Casa, que nos conta quem são estas crianças, como chegam a Portugal e como são integradas no nosso País. Histórias que aqui, neste canto da Europa, temos dificuldade em imaginar e que são “exemplos de coragem”, “lições de vida vivas”, como lhes chama Dora. O que primeiro pedem quando chegam? Para estudar.

JORNALÍSSIMO – Quem são estas crianças e jovens que chegam a Portugal?
Dora Estoura – São rapazes e raparigas, mais rapazes do que raparigas, que fogem por diferentes razões. Cada um traz uma história diferente para contar. Alguns deles deixam o seu país por razões étnicas, outros viram as suas próprias famílias serem assassinadas. Os rapazes fogem muito por questões políticas, por serem forçados a ser crianças-soldado. As raparigas fogem, sobretudo, da mutilação genital feminina e do casamento forçado.

J – De que países vêm?
DE – A maioria vem de países africanos. Temos alguns casos de jovens asiáticos, do Paquistão, Afeganistão, Sri Lanka. Atualmente vivem jovens de 13 países diferentes na casa. Além destes que referi, também do Mali, do Congo, da República Democrática do Congo, da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri, de Marrocos, da Mauritânia, da Nigéria, do Senegal e de um país europeu, a Ucrânia.

J – E como conseguem chegar até Portugal?
DE – Recorrendo a redes de tráfico, que lhes facilitam a saída do país a troco de algo… Em casos extremos, a troco de exploração laboral, no caso dos rapazes, e de exploração sexual, no caso das raparigas. É um percurso bastante perigoso para quem procura a segurança.

J – De que forma chegam até cá?
DE – A maioria chega por via aérea. Fora da Europa o controle é muito distinto daquele com que estamos familiarizados e conseguem embarcar. Ao chegar cá são encontrados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que os encaminha para a Casa de Acolhimento. Há também casos de jovens que chegam através de trajetos terrestres e marítimos. Falamos de crianças e jovens que, muitas vezes, passam por vários países antes de chegarem a Portugal e são eles próprios a ir ter com o SEF a solicitar proteção quando chegam. Consoante a proveniência, os percursos que as redes traçam para facilitar o acesso ao território europeu diverge muito.

J – Devem chegar num estado muito frágil…
DE – Chegam com traumas diversos… Aqui tentamos ajudá-los a reconquistar a sua dignidade, a sua autoestima, a infância perdida…

J – Como é que o fazem?
DE – Fazemos o histórico de vida, tentamos perceber quem são estas crianças, pegar em todas as competências que têm de modo a fazê-las sentir-se novamente “pessoas” (como elas dizem)… No fundo, tentamos ajudá-los a crescer para serem adultos autónomos e responsáveis na sociedade portuguesa.

J – Na Casa de Acolhimento encontram uma família…
DE – Procuramos criar um ambiente familiar, fazer com que encontrem nesta casa referências, ajudamo-las a criar vínculos, redes de suporte. Tentamos ser a primeira pedra de um alicerce que os vai ajudar a criar raízes em Portugal.

J – É-lhes disponibilizado apoio psicológico?
DE – O acompanhamento psicológico e psiquiátrico é essencial, para assegurar a sua estabilidade emocional e ajudá-los a lidar com as emoções, com o passado, com os desafios do presente e, também, para que não percam a esperança no amanhã.
São jovens bastante corajosos, tiveram coragem de, apesar de todas as vicissitudes, atravessar continentes e começar do zero. Têm esta força dentro deles, mas os desafios são tantos que se esquecem que a têm. Mas têm! E mostrar-lhes isso é uma parte do nosso trabalho.
Quando alguém perde as suas raízes e tudo é novo vive um desafio constante. Se não conseguirmos vinculá-los através dos afetos, não vamos conseguir integrá-los e torná-los nos cidadãos ativos que nós queremos que eles sejam e que eles pretendem ser. Tentamos providenciar-lhes experiências que os ajudem nesse sentido.

J – E vão à escola cá?
DE – A primeira coisa que pedem quando chegam é para ir estudar. Muitos jovens chegam aqui completamente iletrados, vindos de países onde a Educação não é um direito. Aqui querem aproveitar a oportunidade ao máximo, querem crescer enquanto seres humanos. Têm uma grande vontade de vencer na vida. Muitos, quando chegam, além de não conhecerem a língua portuguesa, também não sabem ler nem escrever. E mesmo assim muitos conseguem passar logo no seu primeiro ano em Portugal.

J – Alguns vão para a universidade?
DE – Regra geral vão até ao Secundário. Sentem necessidade de começar a trabalhar imediatamente para conseguirem vingar, mas alguns optam por estudar e trabalhar ao mesmo tempo.
Têm aulas de língua portuguesa, vão à escola, damos-lhes apoio a nível do estudo, fazem voluntariado, estágios, cursos profissionais, desporto. Um deles, Farid, foi campeão nacional de boxe, em Portugal, na sua categoria e a Assembleia da República Portuguesa atribuiu-lhe a medalha de ouro do Prémio de Direitos Humanos em 2013, como forma de reconhecimento pelo seu esforço. Alguns destes jovens têm a felicidade de já terem um trabalho quando saem daqui. Mas nem todos o conseguem… Saem daqui com competências diferentes.

J – E os que, chegados aos 18 anos, não têm ainda meios para serem autónomos?
DE – Quando estão em situação de insuficiência económica são apoiados pelo Estado português, e os que já estão autónomos não precisam do apoio do Estado. Quando saem daqui têm também já uma rede de amigos, que é também muito importante. E vêm sempre cá visitar-nos.

J – Como está a lotação da Casa neste momento?
DE – Há ainda vagas para rapazes, mas há três raparigas a aguardar vez para entrar. Entretanto estão no Centro de Acolhimento para Refugiados (Adultos), do CPR. A Casa tem cinco quartos e capacidade limitada. Este ano, até agora, Portugal já acolheu 40 crianças e jovens refugiados.

J – Qual é a relação destas crianças e jovens refugiados com Portugal?
DE – Eles vivem tudo o que se relaciona com Portugal muito intensamente. Nos jogos de futebol gritam mais do que eu pelo País! Uns contam que escolheram Portugal por causa do Ronaldo, outros porque dizem ter crescido a ouvir que os portugueses são um povo caloroso. Quando já cá estão, dizem que os portugueses são muito acolhedores e manifestam vontade de contribuir para a sociedade portuguesa, de dar também um pouco deles ao país que os está a acolher.

J – Como lidam com o facto de serem refugiados?
DE – Alguns temem preconceitos. Querem ser reconhecidos pelas pessoas que são e não por um facto que aconteceu na sua vida.

J – E sonham regressar um dia ao país de origem?
DE – O país de origem é, regra geral, um sítio agridoce. Têm as doces memórias de quando tudo estava bem. E se, por um lado, sonham regressar e reencontrar aquilo que perderam, por outro, há um lado amargo… foi lá que o chão deles ruiu. Vivem uma dualidade de sentimentos.

J – Nota-se pela forma como fala que gosta muito do que faz…
DE – Adoro… Tem muitos desafios, há muitas noites em que não consigo dormir por tudo aquilo a que assisto através deles. Mas eles são um exemplo de coragem, lições de vida vivas, que tento aprender e procuro transmitir. Aprendo muito com estes jovens, crescemos em conjunto. É um trabalho muito desgastante, mas muito satisfatório também. 

SABIAS QUE?

– Metade dos refugiados têm menos de 18 anos;
– Em todo o mundo, há cerca de 50 milhões de crianças e jovens que tiveram de abandonar as suas casas;
– Desses 50 milhões, 28 milhões fogem a conflitos;
– Entre as outras causas estão a pobreza extrema e as alterações climáticas.
 – Em 2013, Portugal acolheu 85 crianças e jovens não acompanhados; em 2014, o número diminui para 38 e em 2015 voltou a aumentar, para 66. Este ano, até ao momento, o nosso País já acolheu 40 crianças e jovens refugiados.

Deixamos-te com um vídeo da organização não-governamental ‘Save the Children’ sobre este tema.

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