O navio “San Miguel” no combate entre o “Augusto de Castilho” e o “U-139”
Este artigo, resultado de uma investigação de dois alunos de História do 10º ano e do seu professor, transporta-nos para o Atlântico durante a Grande Guerra.
Por José Salgado, Jorge Nascimento Cabral e Sérgio Rezendes*
Durante a I Guerra Mundial, um conjunto de navios pertencente a companhias privadas foi entregue, mediante requisição governamental, aos “Transportes Marítimos do Estado” para ajudar no esforço da Grande Guerra.
Foi isso que aconteceu ao navio “San Miguel”, com capacidade para cerca de 200 passageiros e 100 tripulantes, que era propriedade de Empresa Insulana de Navegação (E.I.N.). A companhia, sediada em Ponta Delgada, assegurava rotas quinzenais entre Lisboa e os Açores e rotas mensais para a Madeira.
Também o primeiro arrastão português destinado à pesca do bacalhau foi requisitado pela Marinha Portuguesa. Mandado construir pela “Parceria Geral de Pescarias, Lda.”, o arrastão “Elite” – mais tarde, rebatizado “Augusto de Castilho”, em homenagem ao almirante com esse nome (essa é uma história que contaremos já a seguir) – foi requisitado em junho de 1916 e convertido em patrulha oceânico. Não foi o único. No total, a Marinha Portuguesa requisitou onze arrastões para ajudarem no esforço de guerra.
O “Augusto de Castilho” tinha uma guarnição de 41 homens e foi inicialmente artilhado para as novas funções com uma peça “Hotchkiss” de 47 mm, conhecendo, algum tempo depois, uma segunda igual e troca da de vante (a dianteira do navio), por outra de 65 mm.
O “Augusto de Castilhou” e o “San Miguel” ficaram na história da Grande Guerra pelos acontecimentos vividos em outubro de 1918.
“San Miguel”, o “Augusto de Castilho” e o “U-139”: o combate de 14 de outubro de 1918
No dia 13, o “San Miguel” estava pronto a zarpar do Funchal com 198 passageiros e 72 tripulantes. O “Augusto de Castilho” ia escoltá-lo numa viagem até Ponta Delgada. As duas embarcações partiram às 16 horas da ilha da Madeira rumo aos Açores, posicionando-se o “San Miguel” a estibordo do “Augusto de Castilho” à velocidade de 9 nós.
Foi na madrugada de dia 14 que “San Miguel” e “Augusto de Castillo” foram avistados pelo comandante de um submarino alemão inimigo, o “U-139”. Pelo relatório do Capitão-Tenente e comandante de artilharia do “U-139”, Kurt von Piotr sabe-se que as embarcações portuguesas foram perseguidas durante três horas.
Às 6 horas da madrugada, o Comandante do submarino alemão, Von Arnauld, ordenou “fogo à peça”. A tripulação do navio patrulha português fez-se aos postos de combate, com Carvalho Araújo a dirigir as manobras e o Imediato, Armando Ferraz, a coordenar os fogos de resposta. Ao “San Miguel”, via telefonia sem fios (T.S.F.), ordenou velocidade máxima para Ponta Delgada, enquanto emitia um S.O.S. recebido pelo Navio da República Portuguesa (N.R.P.) e base naval americana, sediados naquela cidade.
Da peça de ré trovejaram os primeiros projéteis em direção ao “U-139”, que continuava a regular o tiro para o “San Miguel”. Complementarmente, o patrulha lançava produtores de fumo para se camuflar, mas estes, rapidamente esgotados, possibilitaram o retomar do fogo inimigo.
Mediante o avanço do “San Miguel”, e visando proteger a sua retirada, o comandante Carvalho Araújo ordenou leme a bombordo avançando à velocidade máxima (pouco mais de 10 nós) em direção ao “U-139”, obrigando-o a abrandar e a concentrar no patrulha, o fogo de artilharia de 150 mm. Acabou por o atingir, cessando o combate por falta de munições. Içada a bandeira branca, seguiu-se a nacional a meia haste, provocando um último disparo do “U-139”, que atingiu mortalmente o comandante Carvalho Araújo.
O relatório da viagem do “San Miguel”
Pelo relatório da viagem do vapor “San Miguel”, Capitão Caetano Moniz de Vasconcelos, sabe-se que, às 6 horas de 14 de outubro, foram atacados à popa por um submarino a bombordo, a cerca de 600 metros.
No escuro e parcialmente submerso, o tiro contínuo levou o Capitão Vasconcelos a alertar via T.S.F. o “Augusto de Castilho” que, patrulhando a estibordo, obrigou o inimigo a suster, momentaneamente, a perseguição. “[…] Devido à nossa marcha forçada, ao estarmos em lastro, ao excelente tempo e ao heroísmo da guarnição do Augusto de Castilho […]” o “San Miguel” bateu recordes ao atingir os 14,6 nós, deixando para trás um “Augusto de Castilho” a investir numa segunda carga, dado o refinar do fogo sobre o paquete. “[…] Durou este combate cerca de 4 hora e meia (…) perdendo-os no horizonte […]”.
Entretanto, no Grupo Oriental do arquipélago dos Açores, sustinha-se a respiração por se temer a morte da guarnição do “Augusto de Castilho”…
Mortos, náufragos e alívio: do apoio militar ao Farol do Arnel
O “Augusto de Castilho” sofreu o impacte de seis granadas, causando sete mortos. A bordo do submarino prestaram-se os primeiros socorros e aguada, para efeitos de propaganda alemã, elogiando-se a ação dos portugueses e de Carvalho Araújo.
Entretanto, uma equipa de assalto alemã saqueava o Patrulha. Os náufragos estavam divididos em duas embarcações, sendo que a primeira, constituída por 27 homens (11 feridos) alcançou Santa Maria às 16 horas do dia 16. Os restantes 12 ficaram cerca de 90 minutos numa jangada para, depois do apoio alemão, serem colocados num bote sem condições, sem vela e com apenas dois remos. Após uma grande odisseia, chegaram por fim à Ponta do Arnel às 11 horas do dia 19, sendo transportados pelo Navio da República Portuguesa “Ibo” a Ponta Delgada e encaminhados para o Hospital da Santa Casa da Misericórdia.
Foi grande a alegria nas chegadas a Vila do Porto e ao Arnel. Momentaneamente, esquecia-se a guerra e a Pneumónica nestas duas ilhas.
Considerações finais
Terminada a investigação, é um facto que aprofundámos as nossas competências de investigação, desenvolvendo importantes conhecimentos sobre a História local e nacional. São ações como a da guarnição do “Augusto de Castilho” que mostram a vulnerabilidade e o horror da guerra, reservando-se ao “San Miguel” a possibilidade de fuga e salvamento de 271 pessoas graças à ação e à dura decisão de Carvalho Araújo, condenando-se a si e à sua guarnição perante um inimigo inevitavelmente superior. É o reflexo de uma guerra logística, fundamental para os Aliados e nevrálgica para a vitória da Tríplice Aliança num mar português primordial ao esforço de guerra nas margens do triângulo EUA, Mar do Norte e Mediterrâneo.
O isolamento, a necessidade de assegurar as ligações ao continente e a falta de meios da Marinha Portuguesa constituíram uma dura realidade aos ilhéus assim como a todos os que cruzavam o Atlântico, principalmente se próximos às ilhas.
Foto de abertura: O vapor “San Miguel” confunde-se com a paisagem nesta imagem em que está pintado com camuflado de guerra | Foto: Momentos de História (sobre imagem de fundo, cor sépia, de Martina Stokow/PDP);
(**) Sérgio Rezendes é professor do ensino secundário e investigador do Laboratório de História, Territórios e Comunidades; José Salgado e Jorge Nascimento Cabral são seus alunos na disciplina de História, no âmbito da qual este artigo foi produzido. Uma versão mais alargada deste texto foi já publicada no “Correio dos Açores”, tendo obtido o segundo lugar na edição de 2021 do prémio “Concurso História e Juventude” da Comissão Portuguesa de História Militar e da Associação de Professores de História. O presente artigo é publicado no Jornalíssimo no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.