1914-1918: a Guerra Humanitária que surgiu do horror e do desespero
Do Comité Internacional da Cruz Vermelha às mulheres republicanas, muitos movimentos surgiram para tentar humanizar a guerra.
Por Ana Paula Pires*
A Guerra de 1914-1918 introduziu a brutalidade e a crueldade humana a um nível sem precedentes, foi o primeiro conflito entre potências globais industrializadas; destruiu a crença no progresso, e colocou em evidência os efeitos de uma vivência global desumanizada que envolveu soldados e civis; o horror e o desespero assombraram as populações, à medida que o medo, a incerteza e a carnificina, provocada pelas modernas tecnologias, transformaram os campos de batalha em campos de morte.
Esta realidade foi acompanhada por esforços crescentes para mobilizar e auxiliar a nível global. Portugal era então um País rural, maioritariamente, analfabeto, a braços com uma situação económica e financeira complexa e dependente do exterior em matéria de abastecimentos alimentares (cereais) e energéticos (carvão). A República Portuguesa ainda não tinha completado quatro anos quando o herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Fernando, e a sua mulher, a duquesa de Hohenberg, foram assassinados por Gavrilo Princip, em Sarajevo, recorde-se que a mudança de regime político levada a cabo em Outubro de 1910, tinha estado longe de ser consensual. Esta polarização da sociedade portuguesa foi acompanhada por esforços crescentes para auxiliar os soldados que logo no Verão de 1914 tinham sido mobilizados para combater em Angola e Moçambique. Muitas destas iniciativas surgiram associadas a uma necessidade, global, crescente, de humanizar a Guerra.
As comunicações avançam e a ajuda multiplica-se
Quando a guerra eclodiu no Verão de 1914 a escritora Ana de Castro Osório considerou que o conflito representava uma, grande, oportunidade para as mulheres republicanas mostrarem a sua capacidade de iniciativa, foi com esse objetivo que, juntamente, com outras intelectuais, criou a Comissão Feminina pela Pátria, destinada a mobilizar as mulheres para o serviço de voluntariado, confecionando roupas e recolhendo donativos para os soldados e outras vítimas da guerra.
O desenvolvimento das comunicações ajudou a que o sofrimento de franceses e belgas deixasse de ser uma realidade distante, foi, de resto, esta noção de proximidade, que esteve na origem da constituição, em Lisboa, de um comité anglo-franco-belga com o objetivo de reunir donativos em Portugal e enviá-los aos feridos internados nos hospitais temporários estabelecidos em França. Esta nova “proximidade” esteve na origem, ainda, do aparecimento do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Neste sentido, coube à imprensa desempenhar um papel fundamental na mediação deste sofrimento; foi nas páginas dos jornais que se publicitaram as subscrições abertas para reunir donativos a favor dos militares e das suas famílias.
Portugal liderava, também, um império multiétnico, que apesar de distante do quotidiano continental era indissociável da identidade nacional, na verdade, o império africano encontrava-se presente na vida dos portugueses através de uma imagética de heroicidade alicerçada no mito da “missão histórica da nação portuguesa” de colonizar outros povos, mito que ajudou a encenar a extensão pluricontinental de um “mundo português”. Foi, assim, também, nas páginas da imprensa colonial que se publicitaram as subscrições abertas, como a que o “Africano”, em Lourenço Marques, organizou para reunir donativos a favor dos militares que tinham ficado prisioneiros das tropas alemãs, em Angola, na sequência do combate de Naulila. Ao longo dos anos do conflito Portugal foi ainda capaz de reunir donativos provenientes de São Tomé e Príncipe, da Guiné, onde os habitantes de Farim organizaram uma récita, de Macau onde uma Comissão, liderada pela mulher do governador reuniu agasalhos, e de Cabo Verde, arquipélago onde graças à iniciativa da colónia inglesa foi organizado um concerto, na Câmara Municipal do Mindelo. A presença de britânicos e sul africanos era significativa, especialmente nos portos da Beira e de Lourenço Marques, a população britânica, que vivia na capital de Moçambique, acabou, também, por se mobilizar para ajudar a angariar verbas destinadas a auxiliar as tropas portuguesas, foi graças à sua iniciativa que foi criado, na cidade da Beira, o “The Beira British Relief Fund”.
Não deixa de ser curioso que as comunidades estrangeiras residentes em Portugal se tenham envolvido nesta mobilização e que uma das formas encontradas para sensibilizar a população para a necessidade de fazer uma doação tenha sido, por exemplo, a inauguração, na Sociedade de Geografia de Lisboa, de uma exposição de fotografias de guerra. Um pouco por todo o País foram organizadas festas e récitas de teatro: a francesa Berthe Baron, que integrava o elenco de uma companhia portuguesa de opereta, dividiu as receitas de um espetáculo que promoveu, em Lisboa, entre a Cruz Vermelha Portuguesa e a Cruz Vermelha Francesa, e um grupo de ingleses organizou um jogo de futebol cujas receitas foram divididas entre a Cruz Vermelha portuguesa e a britânica.
A emergência das ONG e do foco nos Direitos Humanos
A Cruz Vermelha acabou por ter a seu cargo a quase totalidade do serviço clínico e de enfermagem da coluna de operações militares no sul de Angola. Em Benguela foi o antigo fotógrafo da casa Real, José Pedro Passaporte, quem tomou a iniciativa de constituir uma delegação da Cruz Vermelha naquela cidade. Em Angola foi, ainda, constituída uma delegação da Cruzada das Mulheres Portuguesas, que conseguiu não só reunir a participação de grande parte das associações, centros, clubes e jornais de Luanda, mas, também, lançar as bases para o envolvimento dos habitantes de Amboim, na angariação de verbas destinadas às vítimas portuguesas da Grande Guerra.
Quando o armistício foi assinado a Cruz Vermelha Portuguesa tinha já 43 delegações, localizadas em Portugal continental, nas ilhas e em África, a instituição conseguiu, durante os anos do conflito, treinar, criar infraestruturas e gerir centenas de voluntários distribuídos por quatro frentes: frente interna, Flandres, Angola e Moçambique.
Finda a guerra, a reintegração dos combatentes na sociedade passou, também, pela ação filantrópica de muitas das instituições que estiveram na linha da frente durante os anos do conflito, como a Cruz Vermelha Portuguesa, a Cruzada das Mulheres Portuguesas, a Junta Patriótica do Norte ou a Grande Comissão Pró-Pátria. A sociedade global tinha colocado o sofrimento no centro das suas preocupações, na verdade, uma das questões mais persistentes que a comunidade internacional continua a enfrentar são os problemas relacionados com a proteção dos direitos humanos e a salvaguarda da segurança humana, o conflito de 1914/1918 ao aliar os binómios destruição/salvação gerou o ímpeto para a emergência de novas organizações não governamentais, algumas ainda hoje existentes, numa conjuntura marcada por uma tendência secularizante em que se começou a falar menos em caridade, e mais em direitos humanos.
(*) FCSH da Universidade dos Açores e HTC-CFE-NOVA FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.
Imagem de abertura:
Ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa (c.1918) | Fonte: Arquivo Histórico da Cruz Vermelha Portuguesa
Referências bibliográficas:
CABANES, Bruno, The Great War and the origins of Humanitarism 1918-1924, Cambridge/New York, Cambridge University Press, 2014.
PIRES, Ana Paula, “Geographies of humanitarian mobilization. Portuguese Africa and the Great War” in Humanitarianism and the Greater War, (Coord.) Neville Willey e Elisabeth Piller, Manchester, Manchester University Press, 2023, p.69-85.
WYLIE, Neville, OPPENHEIMER, Melanie e CROSSLAND, James (Ed.) The Red Cross Movement. Myths, practices and turning points, Manchester, Manchester University Press, 2020.