“Estou a viver coisas que nunca viveria de outro modo”

Afonso Tuna está a fazer o 11º ano na Holanda, ao abrigo de um programa de intercâmbio intercultural.

Em julho, publicámos aqui, no JORNALÍSSIMO, um artigo sobre Afonso Tuna. Na altura, o jovem tinha acabado o 10º ano numa escola do Porto e estava em contagem decrescente para rumar à Holanda, através de um programa de intercâmbio promovido pela associação Intercultura-AFS Portugal.

Afonso ansiava conhecer a cidade e, sobretudo, a família que o iria acolher – seria uma pessoa só ou um casal? Homo ou heterossexual? Teria ou não filhos? Iria ele partilhar quarto ou teria um espaço só para si?

Passaram mais de dois meses desde que Afonso aterrou na Holanda (onde ficará até julho) e soube a resposta para as perguntas que há meses lhe pairavam na cabeça. “Não era nada do que imaginava”, conta-nos por Skype. Afonso fala connosco a partir do quarto (só dele), bem holandês: da janela tem vista para um dos muitos canais da vila onde está a viver – Veendam, no norte da Holanda.

O tom, bem-disposto, e a cara, sorridente, deixam adivinhar que a surpresa foi positiva. Afonso gosta da família que o acolheu: “É um casal de veterinários, têm cerca de 55 anos e três filhos, entre os 18 e os 24 anos, mas nenhum deles mora cá em casa”, conta. Mesmo assim, Afonso partilha casa com um “irmão”, Alex Wirtz, um húngaro, mais velho um ano do que Afonso. Roel e Dieuwke Boosman quiseram ser família de acolhimento de dois estudantes estrangeiros de uma só vez.

Quando chegou, Afonso tinha já uma bicicleta à espera: “É a coisa mais importante do dia e não estou a brincar. Usei-a todos os dias. Aqui há mais bicicletas do que pessoas e do que carros definitivamente!”.

Afonso tinha sonhado com uma cidade grande. Ficou numa vila e… surpreendeu-se: “Não é muito calmo, não é como as vilas portuguesas. Há tudo o que há numa grande cidade – cinema, teatro, discotecas.. – e acaba por ser mais fácil conhecer pessoas e estabelecer relações”.

Ainda nem dois meses e meio passaram desde que está a viver na Holanda e, às vezes, já se sente holandês. “Chego a esquecer-me de que esta não é a minha língua, nem a minha casa”, diz. Conta que uma das melhores sensações é estar a ler um jornal em holandês e já não se aperceber disso.

As descobertas sucedem-se e entusiasmam-no: “Todos os dias deparo-me com uma diferença, são pequenas coisas, como a comida ou as regras sociais”. Estranhou o pouco contacto físico que há entre as pessoas: “cumprimentam-se com um passou-bem independentemente do sexo. Só se for alguém com quem tenham confiança dão beijinhos, não dois mas três”.

Do contacto que já teve com os holandeses dá para notar que os jovens “têm muito mais o sentido da responsabilidade”. Todos os seus colegas de escola têm um ‘part-time’: “a partir dos 16 anos todos arranjam um trabalho para 0depois das aulas, deixam de receber a mesada dos pais e começam a poupar. A independência aqui começa muito mais cedo e aos 18 anos sai-se de casa para estudar”.

Sobre os pais holandeses, Afonso observa que “são muito mais permissivos, os filhos participam ativamente nas decisões, há muito diálogo”. Exemplifica: “Se queremos ir a algum sítio temos de organizar primeiro a saída, dizer quando vamos, o que vamos fazer, onde vamos dormir, mostramos, eles dizem o que acham e depois é muito mais uma construção conjunta do que uma imposição”.

Talvez por isso os jovens holandeses sejam mais responsáveis. É essa a impressão que Afonso tem: “As conversas são parecidas, mas têm uma mentalidade mais responsável. Nas aulas, por exemplo, o ambiente é de grande concentração. Vejo que eles levam as aulas muito mais a sério, em Portugal é mais difícil ter turmas assim motivadas” Além disso, compara, “os professores dão a matéria e é responsabilidade dos alunos ter boas notas. Não se veem os pais a reclamar com os professores como em Portugal”.

É tanto o que Afonso tem para contar que decidimos dividir este artigo em partes, como uma história em capítulos, que Afonso conta em discurso direto. Depois de ouvi-lo, não é de estranhar que, em nenhum momento, se tenha arrependido de partir ou tenha tido uma enorme vontade de voltar. Claro que às vezes dá por ele a pensar “Como é que eu vim aqui parar?!”. Mas sente-se bem, acha que já cresceu como pessoa e tem uma certeza: “estou a viver coisas que nunca viveria de outro modo”.

Se tiveres entre 15 e 18 anos e quiseres participar num programa de intercâmbio da AFS-Portugal, fica a saber que as inscrições para o próximo ano letivo terminam já no próximo dia 9 de novembro. Este ano, há 23 destinos à escolha. Além de vários países europeus, contam-se os Estados Unidos, o Japão, a Malásia, a Tailândia e a Argentina.

AFONSO TUNA EM DISCURSO DIRETO:

A LÍNGUA:

«É um processo desencorajador às vezes, porque não é de progressão muito rápida. Comecei a perceber quase tudo no primeiro mês, mas entre perceber e falar há uma grande distância (risos). Ainda não tenho qualquer profundidade de expressão. Mas esforço-me. Da língua depende a escola, a socialização, a cultura holandesa… Ando sempre a ver o significado das palavras que não entendo e as aulas de holandês para estrangeiros que tenho uma vez por semana também ajudam. A maior dificuldade para aprender a língua é que toda a gente fala inglês muito bem. Em casa já falo quase exclusivamente em holandês.»

OS AMIGOS:

«Na Escola, além de mim e do meu ‘irmão’ húngaro, há mais três estudantes de intercâmbio: uma espanhola, um chileno e uma italiana. É mais fácil estabelecer relação com eles porque estamos todos a passar pelo mesmo e entendemo-nos bem, mas tentamos não nos fechar nesse grupo. Não foi difícil fazer amigos holandeses, porque todos dominam o inglês e todos têm curiosidade em conhecer-nos no início. Quebrar o gelo não foi difícil, o mais difícil é fazer com que as relações se mantenham. Tem de partir de nós, nós é que temos de agir. Como em tudo num intercâmbio, ser passivo não é resposta para nada, temos que ir perguntar, falar, mostrar curiosidade. Às vezes, depois da escola, vamos comer qualquer coisa juntos, ou a casa uns dos outros. Aqui, as saídas são mais comunitárias e não tanto em grupos pequenos. Há festas na discoteca que são organizadas pela escola.»

A ESCOLA:

«É muito diferente. Aqui o ensino é personalizado. Tem mesmo em conta os objetivos individuais do aluno, adequa-se aos nossos interesses. Não há turmas fixas, cada aluno escolhe as disciplinas que quer. Eu, além das disciplinas que teria aí, estou a ter ‘Música’ e ‘Matemática de Cabeça’, uma disciplina em que aprendo métodos para fazer cálculo mental de forma rápida e eficaz. Há uma disciplina que toda a gente tem: ‘Cultura Holandesa’. Não é história, é muito virada para a atualidade, para tudo o que se faz na Holanda e de que podemos usufruir. Por exemplo, fazemos trabalhos sobre os espaços culturais que existem nas cidades holandesas e podemos pedir bilhetes grátis para ir assistir a espetáculos ao professor da disciplina.»

AS AULAS:

«Na escola, está a correr melhor do que esperava. Há aulas que entendo melhor do que outras, dependendo da disciplina e da matéria que está a ser dada. O facto de ter disciplinas mais científicas também ajuda, é uma linguagem mais internacional. Mas não é fácil, embora os professores deem uma grande ajuda. Preocupam-se em explicar melhor a matéria ou falar em inglês connosco. Ao contrário do que pensava, acho que vai ser possível passar o ano. Vou ter de fazer exames nacionais aí em Portugal, mas a matéria é praticamente a mesma. Aqui na Holanda a avaliação é feita de maneira mais contínua. O Secundário tem seis anos e, durante esse período, a avaliação é permanente.»

OS HORÁRIOS:

«Na escola, a carga horária é parecida. Entro às oito e saio, no máximo, às três e meia da tarde. Mas é curioso que aqui não há intervalo entre as aulas, só temos intervalo a meio da manhã e à hora de almoço. Às cinco da tarde já jantei. Faço os trabalhos de casa e as atividades extracurriculares depois do jantar, como todos os holandeses. Aqui toda a gente faz alguma coisa, tem outros interesses além da escola. Eu estou a ter aulas de teatro e badminton. 95% da população faz desporto, a prática desportiva é muito facilitada e há infraestruturas muito acessíveis para todos os desportos que se possam imaginar. Deito-me por volta das dez e meia da noite.»

AS REFEIÇÕES:

«O pequeno-almoço é parecido ao nosso, mas há duas coisas que não podem faltar: pão com pepitas de chocolate e queijo. Enquanto tomo o pequeno-almoço faço sandes para levar para o meu almoço. Aqui, não há cantinas ou restaurantes que façam refeições quentes ao almoço, esse é um conceito que não existe. A única refeição quente é o jantar, ao meio da tarde, o que em termos de saúde faz mais sentido porque vamos dormir de barriga não tão cheia. As refeições são boas, mas são muito à base do mesmo: batatas cozidas, vegetais e um pouco de carne. A comida é aquilo de que tenho mais saudades de Portugal. Não é má de todo, é saborosa, mas é muito repetitiva e não existe aquela aura de misticidade à volta das refeições. São sempre refeições muito rápidas e não há aquela paixão, aquele prazer. A comida é um alimento. Estou a comer mais saudável do que nunca. É quase a roda dos alimentos levada à letra (risos). Os meus pais já me enviaram bacalhau e chouriço e já fiz alguns pratos portugueses. Outra coisa boa é que existem restaurantes portugueses por todo o lado. Ainda não fui a nenhum, mas quando estiver mesmo com muitas saudades vou.»

LIGAÇÃO A CASA:

«Falo pelo Skype com os meus pais uma vez por semana, conto como correram as coisas, fico a saber se está tudo bem. E com os meus amigos a mesma coisa. Tento que as relações sejam o mais normalizadas possível, senão ia ser como gerir a vida que eu tinha aí remotamente. Uso as redes sociais, sobretudo o Instagram. É a maneira mais geral de comunicar que tenho, assim conto logo tudo a toda a gente, todos têm acesso ao mesmo. O Facebook uso-o mais para comunicar com os amigos holandeses.»

VIAGENS

«Todos os fins-de-semana tento descobrir qualquer coisa ou fazer alguma atividade diferente. Já fui a Amsterdão, a Roterdão, a Groningen. É fácil viajar, há uma rede de comboios que chega a todo o lado.»

As fotos que ilustram este artigo foram tiradas por Afonso. Mostram a sua família, a sua casa junto ao canal, um dos muitos parques de bicicletas da vila onde vive e, ainda, os moinhos dispersos na paisagem e as tradicionais socas de madeira holandesas.

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