O investigador do Laboratório História, Territórios e Comuunidades junto ao destroço do SS Dago | Foto: Armando Ribeiro

As águas portuguesas e as histórias escondidas das duas guerras mundiais

A neutralidade mantida por Portugal na Segunda Guerra Mundial não evitou ataques. Atingido por um avião alemão, o cargueiro SS Dago, naufragado perto de Peniche, é disso exemplo.

Por Paulo Costa*

Entre 2014 e 2018 evocou-se, um pouco por todo o Mundo, o centenário da Primeira Guerra Mundial. Entre muitos outros eventos organizados pelas nações outrora beligerantes, a UNESCO, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pela Educação, Ciência e Cultura, alertou para a importância do Património Cultural Subaquático da Grande Guerra enquanto mais-valia para a Paz e a reconciliação. Devido ao avanço tecnológico que se alcançou na viragem do século XX, a guerra no mar durante a Primeira Guerra Mundial atingiu uma dimensão de consequências absolutamente devastadoras. Tanto as batalhas navais, como a atividade dos submarinos, provocaram uma quantidade imensa de mortes, cujo impacto social se fez sentir de forma até então inédita na opinião pública dos países em guerra. Mas a Segunda Guerra Mundial não lhe ficou atrás, e o número de navios e vidas perdidas foi até superior.

Assim, sugere a UNESCO que o Património Cultural Subaquático resultante de ambas as guerras mundiais nos alerta para o quão devastadores podem ser os atos de guerra humanos, o que nos deveria encorajar a envidar esforços para manter uma paz duradoura. O caminho para este entendimento passará necessariamente por estudar o Património Cultural Subaquático e difundir esse conhecimento junto dos cidadãos.

Uma neutralidade que não evitou incidentes

Portugal não é exceção. Viu-se envolvido na Primeira Guerra Mundial e, apesar de ter mantido a sua neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, isso não impediu que ocorressem em território nacional vários incidentes envolvendo navios ou aeronaves das nações beligerantes. Nas nossas águas territoriais encontram-se inúmeros vestígios de Património Cultural Subaquático de ambas as guerras mundiais.

Mesmo estando o principal teatro de operações europeu afastado do solo português, ainda assim, o nosso espaço aéreo foi regularmente cruzado tanto por aviões aliados, como do Eixo, em trânsito entre as suas bases na Europa e as missões que lhes eram atribuídas no Golfo da Biscaia, no Atlântico ou mesmo no Mediterrâneo e no norte de África.

Ainda mais frequentes eram os navios mercantes que navegavam junto à costa portuguesa, na esperança de encontrar em águas neutrais alguma segurança contra a presença de submarinos e aviões inimigos. Mas essa aparente segurança não era de modo algum garantida, pois no momento do confronto raros terão sido os intervenientes que procuraram estimar a sua posição antes de iniciar qualquer ação bélica, do que resultava invariavelmente o desrespeito pela neutralidade do território português.

SS Dago: o cargueiro afundado perto de Peniche

Foi o que aconteceu no dia 15 de Março de 1942, a escassas três milhas a sudoeste do Cabo Carvoeiro e da vila de Peniche, quando um avião alemão Focke Wulf 200 Condor atacou e afundou o navio cargueiro SS Dago, que navegava sob pavilhão britânico.

O cargueiro inglês SS Dago | Foto: Hull History Centre

O SS Dago era um cargueiro a vapor com cerca de 90 metros de comprimento e uma tonelagem bruta de 1757 toneladas. Fora contruído na Escócia em 1902 e tinha como armador a britânica Ellerman’s Wilson Line. Proveniente de Gibraltar, embarcou sabão e maquinaria diversa em Lisboa e rumava agora a Leixões para carregar cortiça. Eram já cinco e meia da tarde quando, perto do Cabo Carvoeiro, foi avistado pela amura de estibordo um avião que se dirigia para oeste. Quando nada o fazia prever, o avião mudou bruscamente de rumo e dirigiu-se para o Dago, sobrevoando-o da proa à popa.

A tripulação do cargueiro identificou-o como sendo um Focke Wulf Condor alemão e abriu fogo com o pouco armamento de que o navio dispunha, mas sem sucesso. O Focke Wulf executou uma segunda passagem sobre o navio, como que para se certificar do alvo, e lançou de seguida três bombas. A primeira bomba explodiu no castelo da proa, a segunda bomba entrou por uma escotilha de carga e rebentou num porão que se encontrava vazio, a terceira bomba caiu na água, mas a explosão junto à ponte do navio destruiu-a. Segundo o relato dos sobreviventes, o SS Dago demorou apenas cinco minutos a afundar-se.

Da aguardente portuguesa às duas linhas escritas por Salazar

Os 37 elementos da tripulação conseguiram salvar-se todos, em duas baleeiras, e remaram em direção a terra. Foram recolhidos pela embarcação salva-vidas de Peniche, o Almirante Sousa e Faro, que os rebocou até ao porto de pesca. Foi aí que desembarcaram, já de noite, sob os holofotes dos bombeiros e perante a população da vila que, desperta pelo som das explosões, se reuniu para ver os náufragos. Logo no dia seguinte, sem mais demoras, os marinheiros ingleses foram transportados para Lisboa numa camioneta fretada pela Capitania. À saída de Peniche, elementos da população local compareceram para se despedir dos britânicos, a quem ofereceram uma caixa de garrafas de aguardente… para o caminho.

Os naúfragos do SS Dago chegam a Lisboa, ao Terreiro do Paço |Foto: Arquivo fotográfico do jornal O Século – ANTT

Dando mais importância a outros aspetos da vida política nacional, este episódio não mereceu especial atenção de Salazar, que lhe dedicou apenas duas linhas num breve memorando da reunião onde o embaixador britânico expressou o seu desagrado pelo sucedido em território português. Foi enviada uma nota de protesto à Alemanha, que se revelou inconsequente.

O SS Dago permaneceu esquecido durante décadas, até que um grupo de investigadores e mergulhadores se propôs identificar o seu destroço e conhecer a sua história. O destroço foi objeto de uma investigação profunda que revelou não só como a neutralidade portuguesa foi tantas vezes desrespeitada, mas também como um episódio desta natureza se enraizou na memória coletiva das gentes de Peniche, pois que entre a comunidade piscatória ainda havia quem se lembrasse da agitação provocada pela singular passagem dos náufragos pela terra, perturbando as rotinas locais.

Com o objetivo de evocar este episódio da história local, a autarquia promoveu várias pequenas palestras onde as novas gerações da população de Peniche tiveram oportunidade de conhecer algum do Património Cultural Subaquático existente nas águas de Peniche, e a história do SS Dago, atacado e afundado por um avião alemão ao largo do cabo Carvoeiro.

Quanto ao destroço do SS Dago, repousa ainda hoje a 50 metros de profundidade, tal como no dia em que se afundou. Como uma cápsula do tempo, visitado apenas por alguns, mas lembrando a todos o poder devastador da guerra.

Foto de abertura:
O investigador do Laboratório História, Territórios e Comuunidades junto ao destroço do SS Dago | Foto: Armando Ribeiro

(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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