Capa d’As Farpas de 1871.

Revisitando “As Farpas” de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (1)

Neste primeiro de dois artigos, ocupamo-nos do porquê destas crónicas e dos temas por elas visados.

Por Álvaro Costa de Matos*
Era a segunda vez que trabalhavam juntos. Depois do sucesso editorial de O Mistério da Estrada de Sintra, publicado originalmente no Diário de Notícias a partir de 24 de Julho de 1870, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão decidiram lançar-se num novo projeto, As Farpas. Se o primeiro, como recorda Maria Filomena Mónica, teve como resultado a “publicação do primeiro policial português”, o segundo serviu sobretudo para provocar o status quo, através duma Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, como se auto-intitulavam As Farpas.

Datado de Maio de 1871, este notável empreendimento jornalístico de Eça e Ramalho, começou a ser publicado em Lisboa em Junho desse ano, duas décadas após a insurreição militar liderada pelo marechal duque de Saldanha. Condicionado pela juventude e irreverência de ambos, influenciado pelas leituras académicas de Proudhon, talvez tivesse como fim último fazer uma espécie de balanço crítico do liberalismo português, nomeadamente da Regeneração saída do golpe militar contra o último ministério de Costa Cabral.

As Farpas publicaram-se até 1882. Voltaram a imprimir-se entre 1887 e 1890 e tiveram uma última série de 1911 a 1915. Mas desde Novembro de 1872 que As Farpas não contaram com a colaboração de Eça, que optou por uma carreira diplomática em Havana. As Farpas que são analisadas neste artigo são As Farpas queirosianas, o grosso dos livrinhos que saíram em 1871-1872 para gáudio dos leitores.

“Vamos rir pois. O riso é uma filosofia”

Voltando ao objetivo d’As Farpas: no opúsculo de apresentação, cujo sucesso obrigou a uma segunda edição, ficamos logo a saber ao que vinham: “Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença geral. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o progresso da decadência”. O que seria feito pondo “a galhofa ao serviço da justiça”: “Vamos rir pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.”

Eça e Ramalho, a “dupla imbatível” d’As Farpas.

Em 1890, na advertência ao primeiro de dois volumes que reuniam a sua colaboração, Eça corrobora o programa humorístico d’As Farpas. Seja no título atribuído aos volumes, Uma Campanha Alegre, ao recordar que “desses tempos ardentes me ficara a ideia duma campanha muito alegre, muito elevada, em que a ironia se punha radiantemente ao serviço da justiça”; seja na sua releitura crítica a posteriori, encontrando nos seus escritos um “riso tumultuoso, lançado estridentemente através de uma sociedade como seu comentário único e crítica suprema.”

Em suma: a troça como meio para atingir um fim, a denúncia da “política constitucional”; a farpa certeira na Regeneração; a razão contra a “tolice”; a “Verdade” opondo-se ao “Erro”. A ideia não era original: As Farpas inspiraram-se nas Les Guêpes (1839-1849), de Alphonse Karr, um jornal satírico popular de Paris. A confirmação vem do próprio Eça numa carta ao seu amigo João Penha, de Junho de 1871, onde lhe pedia ajuda para o novo projeto jornalístico: “São as Guêpes, de Karr, tratadas ao modo peninsular: mais fogo, mais vigor, mais violência e mais intenção.” (Castilho, 1983, 61).

“Como éramos nós, portugueses!”

Com efeito, As Farpas tudo farpearam. Nada escapou ao olhar cirúrgico de Eça, o autor da maior parte dos escritos aqui revisitados: a política, os políticos, o governo, as eleições, o exército, a instrução pública, os impostos, os problemas do funcionalismo, as cadeias, a Igreja Católica, a literatura, o teatro, a família, o papel da mulher na sociedade e naturalmente os assuntos do dia. Não podendo tratar de todos os temas visados pel’As Farpas, destacamos aqui três: a denúncia da Regeneração, pelo lugar que ocupa; a venda das colónias, pela surpresa que causou (e causa); e a crítica do jornalismo por ser feita por um jornalista.

Os poderes do regime são arrasados: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. Criado pela intriga, pela pressão administrativa, pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500 réis, vem apenas a ser uma assembleia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim.” O Governo, “o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. É apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideias, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta.” Para Eça tudo isto explicaria o desinteresse pela política: “E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o país nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos.”

A inutilidade das colónias leva-o a defender uma proposta ousada: “Que prestígio, que razão tem a nossa tutela? Por consequência, sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX. Vendamo-las. Sim, sim. Bem sabemos toda a sorte de frases ocas, a honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc. Mas somos pobres; e que se diria de um fidalgo – quando os havia – que deixasse em redor dele seus filhos na miséria, na fome e na imundice, para não vender as salvas de prata que foram dos seus avós?”

O desprezo pela imprensa

A crítica do jornalismo é estranha. A colaboração de Eça na imprensa deu-lhe dinheiro, visibilidade e reputação, com O Mistério da Estrada de Sintra no Diário de Notícias, como já tinha dado na sua estreia literária na Gazeta de Portugal, em 1866, ou na redação integral do Distrito de Évora, no ano seguinte. Mas, pelos vistos, a experiência não foi positiva, tal o desprezo de Eça pelo jornalismo, jornalistas e jornais portugueses. Dividia estes em dois tipos, “os noticiosos e os políticos”. Os primeiros teriam “todos a mesma notícia”, primando pela banalidade; os segundos teriam “todos a mesma política”, a tríade “ordem, economia e moralidade”. Aos jornais políticos atribuía-lhes outro problema: harmoniosos na exposição da doutrina, nem sempre o eram “na apreciação dos factos” e das pessoas. Por outras palavras, não eram credíveis nem imparciais.

A antipatia pela imprensa perdurou no tempo, pois vamos encontrá-la na sua obra posterior de romancista. Em 1880, ano da publicação dos Maias, podia ler-se aí o juízo severo de João da Ega ao visitar o jornal A Tarde: os jornais portugueses eram “folhas rasteiras de informação caseira”. O que mostra como a ficção de Eça é fortemente tributária da do jornalista d’As Farpas, revelando igualmente uma forte continuidade lógica e ideológica entre o jornalista social de 1871-1872 e o romancista social de 1875-1888.

“Farpas” ainda atuais?

O retrato que Eça fazia do país, do seu passado e presente, era demolidor e, em certos aspetos, permanece atual: “Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exatamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. (…) Este caldo é o Estado. Toda a nação vive do Estado. (…) Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude no nosso interesse.”

Muitos destes temas já tinham sido abordados por Eça no Distrito de Évora, embora sem a virulência e o sarcasmo d’As Farpas. Não eram uma novidade, mas são uma fonte incontornável para questionar o Portugal da Regeneração, conhecer a sua evolução cultural (As Farpas divulgaram as Conferências do Casino e nelas Eça atacou a sua interdição e respondeu às acusações feitas aos conferencistas), fazer a história da própria publicação e mesmo para contar a vida e a obra de Eça – aspetos por vezes descurado no estudo d’As Farpas. (Continua aqui)

Bibliografia sumária
CASTILHO, Guilherme de – Eça de Queirós, Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983.
MEDINA, João – As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal. Lisboa: D. Quixote, 1984.
IDEM – “As Farpas”, in MATOS, A. Campos (coord.) – Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 1989, pp. 415-419.
MÓNICA, Maria Filomena – Eça de Queirós. Lisboa: Quetzal, 2001.
QUEIROZ, Eça de – Uma Campanha Alegre. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890.

(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH (https://htc.fcsh.unl.pt) e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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