Há cem anos, o mundo assistiu à Revolução Russa
Como reagiu Portugal aos acontecimentos que se desenrolavam na outra ponta da Europa?
Por Maria Alice Samara *
Em março de 1917, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, do Governo de União Sagrada, apresentava na Câmara dos Deputados notícias que recebera, dando a conhecer os últimos acontecimentos na Rússia, com a queda do regime czarista, ou seja, a Revolução de Fevereiro.
As forças políticas presentes saudaram a Duma (assembleia) e o povo russo. O deputado socialista Costa Júnior fê-lo de forma particularmente calorosa – “vendo que o novo Governo, ao tomar posse, começou por garantir todas as liberdades, por consignar o direito à greve, e por pôr em liberdade todos aqueles que, vítimas da autocracia russa, gemiam nas masmorras imperiais” – e saudando o povo russo “pelo seu gesto nobre e levantado, que muito há de influir no desenvolvimento das ideias emancipadoras que norteiam a humanidade” (Diário da Câmara dos Deputados, 20 de março de 1917).
No entanto, este consenso inicial não se iria manter, sobretudo depois da Revolução de Outubro de 1917, cujo significado e alcance eram de natureza bastante diferente da que teve lugar em fevereiro. Em outubro, os bolcheviques, liderados por Lenine, puseram fim ao governo de Kerensky protagonizando um dos mais significativos acontecimentos da história do século XX, com o triunfo da revolução bolchevique.
Enquanto na Rússia se desenrolava o processo político que conduziria ao assalto do Palácio de Inverno (a residência de inverno dos czares russos, em São Petersburgo, tomada pelos bolcheviques, num momento essencial e icónico da Revolução de Outubro), Portugal vivia um ano difícil. País beligerante desde 1916, no início de 1917 partiram os primeiros contingentes militares para a Flandres, num contexto de uma grande clivagem social e política em torno da participação portuguesa na I Guerra Mundial (1914-1918), nomeadamente no teatro de operações europeu.
Em Abril, a União Sagrada de democráticos e evolucionistas (uma aliança preconizada pelo Presidente da República Bernardino Machado, após a Alemanha ter declarado guerra a Portugal, em março de 1916) soçobrou e o Partido Democrático passou a governar sozinho.
As dificuldades inerentes ao contexto de guerra, nomeadamente no que ao abastecimento da população diz respeito, agudizaram-se, assistindo-se a vários episódios de assaltos a estabelecimentos comerciais, motins e levantamentos populares. Aliás, o descontentamento social crescia a par das movimentações do mundo operário e do trabalho, com um número significativo de greves, quer nas zonas rurais, quer nas cidades, fortemente reprimidas pelo poder. No final do ano, pouco depois da Revolução de Outubro, Sidónio Pais afastou os democráticos e tomou o poder.
As notícias da Revolução Russa de Outubro, acontecimento histórico central no século XX, abriram uma importante divisão na sociedade portuguesa. Para muitos, como os trabalhadores, o mundo do trabalho e uma parte do campo político de esquerda, foi, apesar de eventuais divergências, um farol de esperança, o exemplo real de uma revolução proletária bem-sucedida. Abria, assim, a possibilidade de transformar o que de injusto e desigual existia na sociedade portuguesa. Para outros, como as classes possidentes ou o campo político conservador, representava o “mundo ao contrário”, a subversão do que conheciam e prezavam e, por isso, a temiam e rejeitavam.
FOTOS: 1) Revolução Russa de 1917 – Wikimedia Commons; 2) Tomada do Palácio de Inverno; 3) Da Ilustração Portuguesa (O Século Cómico)
(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa – e o Jornalíssimo, com coordenação de Ana Paula Pires, Luísa Metelo Seixas e Ricardo Castro.