Mário de Sá-Carneiro, a vida na obra
Viveu pouco, mas intensamente. Suicidou-se há cem anos e a sua obra explica porquê. 10 parágrafos sobre o poeta atormentado.
“Perdi-me dentro de mim/Porque eu era labirinto,/ E hoje, quando me sinto./ É com saudades de mim.// Passei pela minha vida/Um astro doido a sonhar./ Na ânsia de ultrapassar,/ Nem dei pela minha vida. (…)”
1) Foi curta a vida de Mário de Sá-Carneiro. Nascido em 1890, em Lisboa, haveria de morrer cedo, com apenas 26 anos – a idade que tinha quando, a 26 de abril de 1916, se suicidou em Paris;
2) “Na ânsia de ultrapassar”, como diz no poema “Dispersão”, com que abrimos este artigo, escreveu – poesia e prosa sobretudo, mas também uma peça de teatro, “A Amizade”.
3) Mário de Sá-Carneiro pôs a sua vida na obra. O que escreveu é bem o retrato da existência atormentada que teve – as depressões perseguiram-no, bem como um sentimento constante de inadaptação, de insatisfação, que transmite na escrita, onde a ideia de morte e a busca do seu próprio eu estão sempre presentes;
4) A morte marcou-o desde cedo: Sá-Carneiro perdeu a mãe com apenas dois anos, uma ausência que sentiu durante toda a vida; o pai foi um pai ausente, deixou-o ao cuidado dos avós;
5) Aos 21 anos, Sá-Carneiro matriculou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, onde não chegou a terminar o primeiro ano, tendo-se mudado para Paris logo no ano seguinte. Aí planeava continuar os estudos, na Universidade de Sorbonne. Na capital francesa, porém, o poeta entregou-se a uma vida boémia e abandonou os estudos. A vida desregrada, à margem dos outros e das convenções sociais, foi uma evasão para alguém que se sentia como um intruso no mundo, como um “emigrado astral”, nas palavras do próprio;
6) 1912 foi um ano decisivo: marca a sua ida para Paris, onde escreveu uma boa parte da sua obra, e, também, o encontro com o “querido amigo” e “mestre” Fernando Pessoa, com quem se correspondia regularmente. As mais de 200 cartas e postais que Sá-Carneiro escreveu a Pessoa estão na Biblioteca Nacional e encontram-se, também, publicados em livro. Constituem um elemento precioso para compreender o autor e, tal como a obra, transmitem a angústia e o pessimismo em que vivia. Foi a Pessoa que Sá-Carneiro escreveu uma carta de despedida (lê um excerto no final deste artigo), em que anuncia ao amigo o fim trágico que toda a sua escrita anunciava – a intenção de suicídio;
7) Juntamente com Fernando Pessoa, Sá-Carneiro fica na História da Literatura Portuguesa como um dos nomes mais marcantes do Modernismo – essa poesia nova e revolucionária que chocou a burguesia de inícios do século XX, ao romper com os cânones vigentes. Foi, também ele (como Pessoa ou Almada-Negreiros), um dos fundadores da revista literária Orpheu, da qual apenas foram publicados dois números, mas dois números históricos. O nome da revista batizou toda uma geração que introduziu o Modernismo nas Artes em Portugal;
8) A amizade e a correspondência entre Sá-Carneiro e Fernando Pessoa inspiraram o realizador João Botelho. “Conversa Acabada” é um filme de 1981, que retrata como, numa sociedade em crise política e moral, os dois amigos “reinventam a língua, o modo de dizer, pagando os riscos da sua aventura” – “um rebenta a solidão no fogo dos heterónimos; o outro despedaça o corpo e a própria vida, na vertigem dispersa de poemas e novelas”;
9) Apesar do seu espírito de revolta, da insatisfação permanente, o narcisismo é um tema constante na obra de Sá-Carneiro: fala muito de si, dos seus dramas existenciais, bem como dos motivos que o impediram de atingir a vida que idealizou;
10) A sua obra está dispersa por livros de poesia (“Dispersão”, que dá nome ao poema com que abrimos este artigo, “Indícios de Oiro”) e de prosa (“A Confissão de Lúcio”, “Céu em Fogo”, uma compilação de doze novelas).
Deixamos-te com um excerto da carta de despedida de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa:
“Meu querido Amigo. A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”… Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui… Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. […]” – Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916