Mediterrâneo: o que leva tantas pessoas a arriscarem a vida?

Em entrevista, Ana Rita Gil, investigadora em Direitos Humanos dos Imigrantes, ajuda a perceber as questões que se colocam sobre este drama.

Estima-se que, este ano, cerca de 35 mil africanos tenham atravessado ilegalmente o Mediterrâneo para chegar à Europa. 1600 terão perdido a vida na viagem e 2015 ainda nem vai a meio. No ano passado, 3600 pessoas morreram nas mesmas circunstâncias.

Os números são da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), de que António Guterres é Alto Comissário.

Em sete questões, a especialista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa ajuda a compreender o que leva homens, mulheres e crianças a realizarem esta perigosa travessia e dá a sua visão sobre o que pode a União Europeia fazer para terminar com estes naufrágios.

JORNALÍSSIMO – Quem são e de onde vêm as pessoas que arriscam a vida nestas travessias do Mediterrâneo?

ANA RITA GIL – São pessoas que fogem de conflitos armados ou étnicos, ou apenas da pobreza. Muitos fogem de redes terroristas, como o Boko Haram ou o Estado Islâmico. Vêm sobretudo da Líbia, Síria, Sudão, Eritreia, Nigéria, Gâmbia, Somália, e outros países da África subsariana. Muitos deles já imigraram de uns países africanos para outros, sem conseguirem encontrar paz ou forma de sobreviver. A Líbia é usada como principal porto de partida para a Europa, embora também saiam embarcações da Tunísia e do Egipto.

J – Não têm nada a perder?

ARG – Têm, claro: a vida, numa viagem muito arriscada. Perdem ainda os elevados montantes que pagam para as viagens, sem haver certezas de que podem ficar na Europa. Mas para muitos, ainda assim, vale a pena o risco, pois a sua vida já está de qualquer forma ameaçada no país de origem. De facto, alguns imigrantes referem que o perigo de morrerem na travessia é menor do que os riscos que correm nas suas terras.

J – Em que condições conseguem atravessar o Mediterrâneo?

ARG – É inimaginável. Primeiro há que chegar à Líbia, muitas vezes pelo deserto, e muitas vezes já sob controlo das redes de tráfico. Antes da partida, alguns traficantes juntam os imigrantes em armazéns ou outros espaços abandonados, à espera da sua vez. Podem ficar aí dias. Há umas semanas uma fábrica ardeu e fez muitos feridos, entre os imigrantes que aí estavam. Só foram tratados quando chegaram a Itália – os traficantes não se preocuparam em levá-los ao hospital.

Viajam depois em barcos sobrelotados, sem as mínimas condições – alguns são barcos de pesca, de madeira, outros insufláveis. Chegam a estar cerca de 950 pessoas a bordo. E, claro, não há coletes salva-vidas para todos.

A viagem dura cerca de 16 horas. Durante a viagem, há relatos terríveis: maus tratos e abusos físicos por parte dos traficantes, extorsão de mais dinheiro… O clima de tensão leva a discussões entre os imigrantes. Na semana passada, um confronto entre muçulmanos e cristãos acabou com pessoas atiradas borda fora… Mesmo que não atinja esse extremo, a viagem é duríssima, com condições terríveis passando as pessoas muito frio, fome e sem quaisquer condições de higiene.

Há também relatos de barcos que se perderam e ficaram uma semana no mar. Foi por estarem saturados e esgotados que, na semana passada, ao verem um navio, centenas de imigrantes o afundaram, pois dirigiram-se todos para o mesmo lado a pedir socorro.

J – Estamos perante uma situação de tráfico de seres humanos?

ARG – De uma forma geral, trata-se de uma situação de tráfico de imigrantes. O tráfico de seres humanos destina-se à exploração de pessoas no país de destino (para fins de exploração sexual ou laboral, por exemplo). Aqui, à partida, as redes só transportam as pessoas para a Europa, fazendo-as entrar ilegalmente. Depois, chegando ao seu destino, os traficantes deixam os imigrantes entregues a si próprios. No entanto, há também relatos de tráfico de seres humanos, sobretudo de raparigas, a quem são oferecidos trabalhos na Europa, mas que depois são envolvidas em prostituição. Trata-se, porém, de situações mais marginais.

J – Como operam estas redes?

ARG – Os imigrantes já passam palavra e conhecem quem os possa transportar. As redes chegam a fazer cerca de 20 viagens por semana e podem cobrar de 400 a 800 euros por pessoa, por um pequeno espaço numa embarcação.

Para os imigrantes, essa quantia é uma fortuna, e por vezes levam meses a juntar dinheiro, vendem a casa, todos os seus bens…

Os oficiais líbios não têm meios para combater estas redes. Num país com tantos conflitos, têm apenas quatro embarcações para o efeito. Daí que uma das propostas da União Europeia (UE), a discutir na próxima quinta-feira, seja o reforço do combate às redes nos países de origem, em particular na Líbia.

J – Os refugiados que conseguem chegar à Europa encontram uma resposta para os seus problemas?

ARG – Nem todos. Não se ganha o direito a ficar cá só porque se conseguiu aqui chegar. Muitos deles – a grande maioria – pode ser devolvida aos países de origem. As autoridades têm de analisar o caso de cada uma das pessoas, de forma individual. Todos têm o direito a ser ouvidos.

Porque é que decidiram imigrar? São perseguidos? Fogem da guerra? Ou estão «apenas» em busca de melhores condições de vida?

Aos primeiros, pode ser dada proteção internacional. Já os segundos, à partida, podem não ter o direito de ficar, e podem ser devolvidos aos países de origem. Aos que cá ficam, o que a UE deveria fazer era redistribuí-los por todos os Estados-Membros.

Há um fundo europeu de apoio aos países, precisamente para receberem refugiados. Podem ser recebidos temporariamente – até os conflitos acabarem, por exemplo, ou pode-lhes ser dado o estatuto de refugiado e ficam entre nós a viver, com os mesmos direitos que qualquer imigrante em situação legal.

Depois haverá sempre aqueles que não são “apanhados” pelas autoridades e conseguem entrar ilegalmente.

Na Itália a situação está muito complicada, e dificilmente arranjarão trabalho. O objetivo deles será então dirigirem-se para os países do Norte da Europa (aproveitando o Espaço Schengen e a falta de controlo nas fronteiras).

No entanto, com o seu estatuto ilegal, serão sempre presas fáceis para exploração – no trabalho, por exemplo – e viverão uma vida clandestina, com medo de se dirigirem a hospitais, escolas, etc., com receio de denunciarem a sua situação e serem devolvidos aos países de origem.

J – Como se pode evitar que estes naufrágios continuem a ocorrer?

ARG – Para já, considero importante a retoma da operação “Mare Nostrum”, em que os países da UE, patrulhavam o Mar Mediterrâneo precisamente para socorrer vítimas deste tipo de acidentes.

A operação durou até finais de 2014 e salvou cerca de 100 mil vidas. Suspenderam-se essas operações para não se “encorajar” mais pessoas a imigrar ilegalmente. E o que se ganhou com isso? O número de embarcações apenas diminuiu muito ligeiramente e este ano já morreram pelo menos 1500 imigrantes…

Para além disso era necessário, de facto, combater as redes de tráfico, quer nos países de partida, quer nos vizinhos. Mas a experiência diz que o ser humano continua a arranjar forma de imigrar ilegalmente. Podem fechar completamente o Mar Mediterrâneo que os imigrantes dão a volta e vão por terra, a pé, se necessário. A força do ser humano na busca para a felicidade não pode ser desvalorizada. Por isso uma estratégia que se limite apenas a combater a imigração ilegal será sempre insuficiente.

É necessário que a UE permita que estas pessoas imigrem legalmente. E isso poderia ser feito através de uma decisão da Comissão, que declarasse existir aquilo que se chama «afluxo maciço de pessoas». A UE receberia estas pessoas, distribuía as mesmas pelos Estados-Membros que lhes concederdiam proteção temporária. Trata-se de um problema europeu, porque temos uma política europeia comum de imigração e asilo, e por isso todos temos de colaborar em receber estas pessoas.

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