Fachada da Fábrica de Chá da Gorreana na ilha de São Miguel, nos Açores

O chá nos Açores: o caso da Gorreana

Por Vera Lúcia Bulhões Costa*

Desde a fixação de população no Arquipélago dos Açores, a agricultura foi encarada como um meio importante não só para a subsistência, mas também para a economia local. Deste modo, terão sido experimentadas diferentes culturas, ao longo dos tempos, com o objetivo de compreender quais se adaptavam melhor aos solos vulcânicos, mas também ao mercado a que se destinavam (1).

A partir do século XVIII, Ponta Delgada é considerada o centro com maior importância entre as demais cidades açorianas, devido ao aumento populacional e destaque comercial, evidenciando-se relatos que salientam a fertilidade dos solos micaelenses (2). No entanto, é já no século XIX (particularmente no período compreendido entre 1800-1860), que S. Miguel se destaca assumindo um importante papel em trocas comerciais a nível internacional no chamado “ciclo da laranja”, que ligava a ilha a Inglaterra (3). Muito embora a laranja tenha contribuído para a prosperidade de muitas casas, rapidamente começou a ser um mercado arriscado, tendo em vista a concorrência com o fruto nacional, bem como problemas com o transporte, aliados a uma precária instrução da mão de obra que a cultivava, que face ao surgimento de pragas, e à incapacidade de as ultrapassar acabou por não ter a mesma capacidade de projeção que anteriormente.

Tendo em vista o declínio desta produção e o conformismo em relação às técnicas agrícolas, surge uma elite insular que pretendia implementar reformas na agricultura. É neste sentido que em 1843, nasce a SPAM (Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense), sendo José do Canto o seu grande idealizador. A SPAM terá sido um importante organismo constituído por liberais que pretendiam trazer a modernidade à ilha através de um conjunto de medidas, como a publicação de jornais, organização de palestras e exposições ligadas à agricultura e pecuária, e que acabaram, ainda, por apostar na produção de tabaco (1848) e de chá (1878) (4).

Cabral, G. R. (1874). “No solo, aos activos, poz Deus um thezouro”. O Cultivador, Vol. 1, nº 1. Disponível aqui.

No caso particular do chá, muito embora existam evidências do cultivo da camellia sinensis (planta do chá) na ilha Terceira desde finais do século XVIII, é em São Miguel, a partir do último quartel do século XIX que a transformação desta planta é efetuada, resultado da forte aposta no desenvolvimento de uma logística, conduzida pela SPAM, que permitia informar os gentlemen farmers (5) de forma prática sobre o modo de cultivo e de transformação da planta. A par deste projeto, no ano de 1878, foram contratados dois chineses de Macau (Lau-a-Pan e Lau-a-Teng) para ensinar a cultura e manipulação do chá na ilha (6), tendo sido encaminhados para as plantações de José do Canto na Ribeira Grande, dando formação sobre a produção do chá preto, verde, ponta branca e chá do povo. Tendo em vista os resultados da produção de chá que se traduziram em protótipos de ótima qualidade analisados nos laboratórios dos Jardins de Kew (1878) e no Colégio de França (1879) (7), eram cada vez mais os membros da SPAM a investir nesta cultura. A partir de 1893 (8) começou a ser introduzida de forma progressiva maquinaria de alta qualidade da Marshall, Sons & Company nas fábricas de maior sucesso (imagem abaixo). No início do século XX, dez eram as fábricas mais progressivas (sendo que destas, sete eram localizadas no norte da ilha), havendo outras 38 que ainda se mantinham fiéis às técnicas rudimentares popularizadas pelos chineses- incluindo a fábrica de Chá Gorreana (9).

Muito embora o cultivo do chá se tenha assemelhado um pouco ao da laranja no sentido de contar com muita adesão, o seu cultivo passa a ser encarado como uma cultura arriscada, dada a lentidão de crescimento da camellia sinensis, a dependência de muita mão de obra na apanha e monda do terreno e a concorrência do chá de Moçambique de boa qualidade e em abundância, que competia diretamente com o produto micaelense (10). É neste sentido que se deve entender o facto de os proprietários de fábricas de chá terem desistido da sua produção dedicando-se a outras atividades.

Certidão do contrato celebrado entre a SPAM e Lau-a-Tang, 13 nov. 1877. BPARPD, Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, nº106. Disponível aqui.

Herdeiro desta tradição, destaca-se na atualidade a fábrica de Chá da Gorreana, tendo esta sido a única deste período que resistiu ao tempo e manteve a produção de forma continua até ao presente. Ermelinda Gago da Câmara (fundadora deste negócio em 1883) era uma morgada micaelense que possuía uma vastidão de terrenos que se estendiam desde a Maia a Vila Franca do Campo (11), e que apostou na cultura do chá na localidade da Gorreana. Em 1913, a fábrica passa para as mãos da neta da fundadora – Angelina Gago da Câmara – tendo a pacata fábrica passado por um período de mudança.

A mini-hídrica que teve um papel decisivo em períodos de crise ainda faz parte do espólio da Fábrica de Chá da Gorreana | Foto: D.R.

Através de Jaime Hintze, marido de Angelina, são introduzidas máquinas que contribuíram para a modernização da empresa e para a diminuição na mão de obra. No entanto, o grande marco deste período é a introdução de uma mini-hídrica, que contribuiu para uma diminuição de despesas, salvando o negócio em épocas de crise (12). Jaime Hintze contribuiu ainda para o registo da marca e consequente criação de uma oficina tipográfica para o empacotamento do produto (13). O herdeiro seguinte, Fernando Gago da Câmara Hintze (casado com a atual proprietária do negócio – Berta Meirelles), deu continuidade à obra do pai, aumentando a fábrica e equipando-a com novas máquinas, contribuindo para um aumento significativo da produção e para o desenvolvimento da imagem da empresa. Muito por causa do visionarismo e a consolidação da inovação com a tradição, a Gorreana constitui um legado de 140 anos, que continua atual e a marcar gerações.

Foto de abertura: Exterior da Fábrica de Chá da Gorreana, na Ilha de São Miguel, nos Açores | Foto: D.R.

Notas de rodapé
(1) COSTA, Susana Goulart, Açores Nove Ilhas, Uma História, Berkeley, University of California, 2008, p. 121.
(2) MOURA, Mário, A introdução da cultura do chá na ilha de S. Miguel no seculo XIX (subsídios históricos), Universidade dos Açores, 2018, p. 112.
(3) “Laranja (História económica até à atualidade)”, in Enciclopédia Açoriana, 21/04/2024, disponível em: Direção Regional da Cultura (azores.gov.pt)
(4) “Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense”, in Enciclopédia Açoriana, 21/04/2024, disponível em: Direção Regional da Cultura (azores.gov.pt)
(5) MIRANDA, Sacutela, O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da ilha de S.Miguel, 1789-1880, Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ponta Delgada, 1989.
(6) MELO, Duarte Manuel Espírito Santo, Caminhos do Chá, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 2015, p. 17.
(7) MELO, Duarte Manuel Espírito Santo, Caminhos do Chá, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 2015, p. 20
(8) MOURA, Mário, A introdução da cultura do chá na ilha de S. Miguel no seculo XIX (subsídios históricos), Universidade dos Açores, 2018, p. 426.
(9) MOURA, Mário, A introdução da cultura do chá na ilha de S. Miguel no seculo XIX (subsídios históricos), Universidade dos Açores, 2018, p. 444.
(10) MOURA, Mário, Onze tempos do chá nos Açores (proposta de um esboço), Praia dos Moinhos, Colóquios de Lusofonia, 24-27 de abril de 2014, consultado a 22/04/2024, disponível em: Onze tempos do chá nos Açores (recantodasletras.com.br)
(11) MELO, P. P, Moscatel, C. (2021). Trabalho (no) Feminino: (1850-1926)- História dos Açores, Mulheres Singulares, in Correio dos Açores,  Nº32538. Disponível em: https://trabalhonofeminino.uac.pt/wp-content/uploads/2021/12/2021-09-19-11.pdf
(12) ASSOCIAÇÃO DANIEL DE SÁ (2021). Histórias de vida feitas a pulso: Margarida Hintze, minuto 49:08, disponível em: Facebook Live | Facebook
(13) MELO, Duarte Manuel Espírito Santo, Caminhos do Chá, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 2015, p. 26.

Referências Bibliográficas
Associação Daniel de Sá (2021). Histórias de vida feitas a pulso: Margarida Hintze, minuto 49:08, disponível em: Facebook Live | Facebook
Cabral, G. R. (1874). “No solo, aos activos, poz Deus um thezouro”. O Cultivador, Vol. 1, nº 1. Disponível em: https://azoreana.azores.gov.pt/item/bca9bb10-f29e-4105-83f4-161500c90faf
COSTA, Susana Goulart, Açores Nove Ilhas, Uma História, Berkeley, University of California, 2008, p. 121.
“Laranja (História económica até à atualidade)”, in Enciclopédia Açoriana, 21/04/2024, disponível em: Direção Regional da Cultura (azores.gov.pt)
MELO, Duarte Manuel Espírito Santo, Caminhos do Chá, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 2015, p. 17-26.
MELO, P. P, Moscatel, C. (2021). Trabalho (no) Feminino: (1850-1926)- História dos Açores, Mulheres Singulares, in Correio dos Açores, Nº32538, Disponível em: https://trabalhonofeminino.uac.pt/wp-content/uploads/2021/12/2021-09-19-11.pdf
MOURA, Mário, A introdução da cultura do chá na ilha de S. Miguel no seculo XIX (subsídios históricos), Universidade dos Açores, 2018, p. 112.
MOURA, Mário, Onze tempos do chá nos Açores (proposta de um esboço), Praia dos Moinhos, Colóquios de Lusofonia, 24-27 de abril de 2014, consultado a 22/04/2024, disponível em: Onze tempos do chá nos Açores (recantodasletras.com.br)
MIRANDA, Sacutela, O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da ilha de S.Miguel, 1789-1880, Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ponta Delgada, 1989.
“Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense”, in Enciclopédia Açoriana, 21/04/2024, disponível em: Direção Regional da Cultura (azores.gov.pt)

(*) Aluna do Mestrado em Ensino da História no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário, Universidade dos Açores. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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