Revisitando “As Farpas” de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão
Neste segundo artigo, olhamos para as reações que As Farpas suscitaram, o novo conceito de jornalismo que fundaram e a relação da crítica queirosiana com a História.
Nota: o primeiro artigo desta série de dois sobre As Farpas pode ser lido aqui.
Por Álvaro Costa de Matos*
As Farpas tiveram um enorme sucesso, chegando a tirar dois mil exemplares. Em duração foram um milagre, num país de escassa população e tão iletrado: 4 milhões de habitantes em 1864 e 84,5% de analfabetos em 1878.
“Acolheram-nos como se fôssemos cães danados”
Sem surpresa, os caderninhos de capa alaranjada com o diabo Asmodeus, desenhado por Manuel Macedo, provocaram muitas reações, boas e más. Começando por estas. Desde logo, encontramos ecos delas nas próprias Farpas, de Novembro de 1872, num texto de Ramalho dedicado a Eça aquando da sua saída: “Desencadearam-se contra nós todas as grandes loquacidades de todas as pequenas paixões agravadas e feridas por este insulto – o bom senso, e por esta calúnia – a risada. Acolheram-nos pouco mais ou menos como se fôssemos cães danados”. Antes, Pinheiro Chagas, nas páginas do Diário de Notícias de 15 de Janeiro, já tinha refutado, não sem uma pitada de ironia, a imagem negativa das coisas portuguesas veiculada por Eça n’As Farpas: “Como se pode estar triste em Portugal? Esta mania prende-se com a outra, da decadência das raças latinas [era uma indireta a Antero de Quental e à sua palestra nas Conferências do Casino]. Que somos inferiores às raças germânicas é um facto adquirido para a ciência, que nós, os portugueses, somos os mais reles de todos os latinos, está-o a crítica pátria demonstrando”. Não ficou sem resposta. Tal como não ficou uma outra crítica, de um misterioso “Samuel” (supõe-se ser de José Cardoso Vieira de Castro, 1838-1872), que deu à estampa em 1871 uma carta aos autores d’As Farpas, intitulada Consciência. Carta aos Il.mos e Ex.mos Srs. Ramalho Ortigão e E. Q., Redactores das «Farpas». Nela o autor censura aos “farpistas” o posicionamento religioso contra o papado e o catolicismo, negando que As Farpas fossem o “bom senso”, como se autodefiniam. A resposta, redigida por Eça, saída n’As Farpas de Julho, revela uma certa perplexidade, confessando o escritor, quanto à política, que As Farpas pertencem a um partido profundo, “aquele que está na plateia, comodamente sentado, com o binóculo na mão, o libreto da ópera no joelho, e no bolso – O Tratado dos Temperamentos”.
Quanto às reações boas, tivemos algumas apreciações honestas nos jornais, como, por exemplo, n’O Partido Constituinte: “Mas afinal o que são as Farpas? Eu vo-lo digo e francamente: entendo que são uma publicação agradável, prestadia, quase sempre amena, muitas vezes cheia de aticismo e de boa crítica, implacável e mordaz, uma ou outra vez, mas no fim de contas com incontestável merecimento, e com originalidade. Digo originalidade porque dos escritos modernos portugueses que eu conheço, nenhum lhe toma a dianteira no género”.
Fialho de Almeida, que se inspirou n’As Farpas para fazer Os Gatos (1889-1894), revela-nos a agitação que As Farpas provocaram na capital: “Lisboa, atónita a semelhante desaforo, golfou as raivas biliosas, pela pena do jornalismo atochado de ênfase e parlapatice – o que forneceu à publicação moderna um tesouro de inexaurível ridículo”.
Concluindo: As Farpas tiveram um enorme impacto na opinião pública e publicada da época. Não era para menos, Eça e Ramalho, mas sobretudo o primeiro, queriam agitar as águas, combater a apatia, causar polémica.
Um novo conceito de jornalismo
Tratar-se-ia apenas de um “jornalismo atochado de ênfase e parlapatice”? Não, de modo nenhum. Aliás, “o jornalismo – tanto na forma como no conteúdo – que Eça produz nas Farpas aparece como uma inteira novidade no Portugal Oitocentista. O seu aparecimento não obedece a qualquer estratégia partidária ou a qualquer fito secular imediato, mas tão-só decorre de um propósito crítico e cívico”. As Farpas eram, portanto, um novo e inovador conceito de jornalismo, o “jornalismo de ideias, de crítica social e cultural”. Constituíram um painel jornalístico mordaz da época e uma admirável caricatura da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. Como escreve Medina, em 1989, foram “um sistemático e quase que completo curso de sociologia do Portugal da Regeneração”.
E como inovaram, As Farpas inspiraram a criação de projetos editoriais similares. Além dos Gatos, de Fialho, assinale-se as Noites de Vigília (1875), de Silva Pinto, as Vespas (1879-1880), de Eduardo Barros Lobo, A Má Língua (1889), A Cega Rega (1891), e, no início do século XX, Os Fantoches (1914 e 1923-1924), de Rocha Martins.
Não menos importante: As Farpas de Eça e Ramalho surgiram numa altura importante do desenvolvimento da imprensa portuguesa, coincidindo com a sua fase de industrialização. Na segunda metade do século XIX assistiu-se à explosão do periodismo nacional, com a criação de novos títulos de jornais e revistas. A expansão do jornalismo escrito foi espetacular, com o pico a ser atingido nos anos 90, a época de oiro da imprensa portuguesa, com a criação de 416 periódicos. As causas, combinadas, criaram um ambiente cultural muito favorável ao desenvolvimento e expansão dos jornais: a politização da opinião pública, a melhoria das vias de comunicação e das relações postais, a importação de tecnologia (aumento das tiragens, diminuição dos preços), o aparecimento da imprensa popular (noticiosa, sem filiação partidária, por oposição à imprensa de opinião), o crescimento dos jornais republicanos (de propaganda e sensacionalistas) e a ausência de censura explicam a evolução positiva. Ora, As Farpas, a sua criação, especificidade e êxito, não podem ser desligadas desta realidade, sob pena de não compreendermos o seu significado histórico e cultural.
“Uma campanha muito alegre”
Qual a justeza da crítica queirosiana relativamente ao concreto vivido? Esta é uma questão raramente colocada no estudo d’As Farpas, embora ela seja relevante para compreender a sua importância como fonte histórica. Para responder à pergunta, nada como ler o que sobre a publicação escreveu o próprio Eça na sua antologia de 1890, isto é, quase 20 anos depois: As Farpas eram arremessadas “para todos os lados”, apesar de não se recordar “se acertava” no alvo. Elas eram sobretudo um “riso desabafado – mas escassamente uma verdade adquirida, uma conclusão de experiência e saber, algum resultado visível dessa inspiração de Minerva que eu supunha combatendo por traz de mim, invisível e armada de ouro, como nos campos de Platéa. Nada que para governar entre os homens o pensamento ou a conduta merecesse ficar arquivado em tomos duráveis; – unicamente um riso imenso, troando, como as tubas de Josué, em torno a cidadelas que decerto não perderam uma só pedra”. Ou seja, a opinião de Eça acerca d’As Farpas não era muito positiva, antes remetendo para um trabalho amador, meramente humorístico, que nem arquivo mereceria.
Eça chega mesmo a perguntar, e a responder, em jeito de balanço crítico do seu empreendimento jornalístico: “Ora vale a pena recolher, perpetuar este riso, esparso outrora em panfletos leves? (…) Penso que não. E, por determinação minha, eu deixaria estas Farpas nos breves folhetos amarelos onde o Diabo ri por traz dum óculo”. Apenas a determinação do “camarada Ramalho Ortigão” teria impedido tal destino! Portanto, se nalguns casos as críticas e as denúncias de Eça eram certeiras, noutros primavam pelo exagero, como convinha a uma publicação que queria provocar.
As Farpas são uma preciosa fonte histórica para narrar e interpretar o Portugal da Regeneração, mas não podem deixar de ser sujeitas à crítica do historiador, na sua relação com a realidade histórica. (Fim)
Bibliografia sumária
CASTILHO, Guilherme de – Eça de Queirós, Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983.
MEDINA, João – As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal. Lisboa: D. Quixote, 1984.
IDEM – “As Farpas”, in MATOS, A. Campos (coord.) – Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 1989, pp. 415-419.
MÓNICA, Maria Filomena – Eça de Queirós. Lisboa: Quetzal, 2001.
QUEIROZ, Eça de – Uma Campanha Alegre. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890.
(*) ICNOVA – Instituto de Comunicação da NOVA e HTC — CFE — Nova FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH (https://htc.fcsh.unl.pt) e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.