“As dietas podem desencadear uma desorganização da alimentação”
Psicóloga clínica, Eva Conceição tem-se dedicado ao estudo de comportamentos alimentares desajustados. Ouvimo-la, a propósito das dietas de Verão.
Calor é, para muitos, sinónimo de dietas. E dietas escondem, por vezes, situações a que é preciso estar atento. “Dieta” é, no entanto, um termo que desagrada a Eva Conceição. Mais à frente vais perceber porquê.
Licenciada em Psicologia Clínica pela Universidade do Minho, onde é atualmente investigadora auxiliar, docente e psicóloga clínica, Eva Conceição tem focado o seu trabalho na compreensão de comportamentos alimentares desajustados e no tratamento de perturbações bulímicas.
A quem pensa iniciar uma dieta nesta altura, a especialista deixa um conselho: “acima de tudo, pensem que o Verão tem muito para aproveitar, para viver, independente do peso que se tem”.
JORNALÍSSIMO – Quando pensamos em dietas, pensamos mais em nutricionistas do que em psicólogos…
EVA CONCEIÇÃO – A palavra dieta está carregada de significados negativos. Depreciativos, até. É mais adequado usar termos como “plano alimentar”. Em boa verdade, nem o nutricionista nem o psicólogo devem ajudar a fazer “uma dieta restritiva” considerada como restrição intensa e inflexível alimentar para perder peso.
J – Não é esse, também, o papel do nutricionista?!
EC –O nutricionista estabelece um plano alimentar saudável e ajustado a cada pessoa, com vista a que seja alcançado um peso também ele saudável.
Em alguns casos pode ser necessário estabelecer um plano alimentar com uma quantidade calórica muito baixa, mas sempre assegurando que as quantidades nutricionais são as necessárias para não haja prejuízo na vida da pessoa.
Noutros casos, o nutricionista ajuda a manter uma alimentação saudável, variada, flexível, evitando que haja excessos. Em função dos objetivos da pessoa e da atividade física, podem ainda ser estabelecidos planos alimentares mais calóricos para que haja resultados no rendimento físico.
Bons hábitos alimentares todos conhecemos e, por isso, neste campo o nutricionista é que terá a última palavra e deve sempre avaliar a pessoa individualmente e ajustar o plano aos seus objetivos.
J – E o psicólogo, quando pode ser chamado a intervir?
EC – Às vezes, as pessoas podem ter dificuldades do foro comportamental e/ou psicológico que põem em causa um comportamento alimentar organizado e saudável.
O psicólogo, como especialista do comportamento e da psique humana, pode intervir abordando e trabalhando problemas que estão a fazer com que aquela pessoa não tenha os hábitos alimentares mais corretos. Estamos a falar de dificuldades do foro comportamental e/ou psicológico que frequentemente levam a uma ingestão excessiva ou descontrolada.
«O psicólogo, como especialista do comportamento e da psique humana, pode intervir abordando e trabalhando problemas que estão a fazer com que aquela pessoa não tenha os hábitos alimentares mais corretos».
J – São as tão faladas perturbações do comportamento alimentar? Que perturbações são estas afinal?
EC – Muitas são as pessoas que comem quando estão nervosas, tristes ou muito frustradas. Isso não faz delas pessoas com perturbações alimentares. Frequentemente isto acontece para as pessoas terem algum alívio de uma situação emocionalmente exigente.
Comer não deixa de ser uma atividade prazerosa que é muitas vezes sentida como uma forma de ter companhia quando se está sozinho ou de evitar lidar com sentimentos/situações difíceis.
As perturbações alimentares representam problemas menos comuns e sérios. O manual de diagnósticos psiquiátricos passou recentemente a denominá-las Perturbações Alimentares e da Alimentação. São problemas do foro psiquiátrico e que requerem, portanto, a intervenção de psiquiatras ou psicólogos.
J – Como a anorexia e a bulimia?
EV – Além da Anorexia Nervosa (AN) ou da Bulimia Nervosa (BN), como são habitualmente conhecidas, hoje consideram-se outros problemas, como a Perturbação de Ingestão Alimentar Compulsiva (PIAC).
J – O que é que as distingue?
EC – Se na AN há um controlo alimentar muito restrito que leva a um peso muito baixo, na BN e na PIAC, aparecem episódios de ingestão alimentar compulsiva que quebram tentativas de controlo alimentar.
Por isso, a seguir a estes episódios, as pessoas que sofrem de BN vão tentar compensar esse excesso de alimentos ingeridos com o vómito, com o uso de laxantes ou diuréticos, com exercício físico excessivo ou jejum.
Estes episódios de ingestão compulsiva estão associados a sentimentos de depressão, frustração, desvalorização pessoal muito intensos e perturbadores.
Ainda que em graus diferentes, todos estes comportamentos revelam problemas com o controlo alimentar e não podem ser confundidos com uma “mania das dietas” (o tal conceito que, de forma depreciativa, subvaloriza o sofrimento).
Estamos a falar de problemas que não se limitam ao controlo da alimentação, mas que revelam uma necessidade absoluta – e habitualmente perfeccionista – de controlo pessoal, que não está a ser exercida de uma forma adequada.
«Comer não deixa de ser uma atividade prazerosa que é muitas vezes sentida como uma forma de ter companhia quando se está sozinho ou de evitar lidar com sentimentos/situações difíceis».
J – Uma dieta pode desencadear uma perturbação destas (NA, BN, PIAC)?
EC – São diversos os fatores que risco que têm vindo a ser estudados, mas não podemos dizer que determinado evento/característica, seja a causa direta de uma perturbação alimentar.
As “dietas”, consideradas como a restrição intensa e inflexível da alimentação com o propósito da perda de peso, podem desencadear uma desorganização da alimentação e das sensações de fome e saciedade que vulnerabilizem a pessoa para o desenvolvimento deste tipo de perturbações.
Ainda assim, como se sabe, há uma percentagem muito significativa de adolescentes e adultos que inicia “dietas” e só uma percentagem reduzida de pessoas (cerca de 3% da população jovem adulta em Portugal) parece desenvolver estas perturbações.
J – A bulimia ou a anorexia podem ser sintoma de que há outras questões escondidas a precisar de serem trabalhadas?
EC – A investigação tem mostrado que, independentemente de outras questões que possam levar ao desenvolvimento da perturbação, a sua abordagem clínica deve passar pelas questões que mantêm o comportamento alimentar desorganizado.
Como em todas as perturbações psiquiátricas, é frequente que o funcionamento da pessoa em diferentes áreas da vida – sejam os estudos, vida profissional, relações interpessoais, amorosas ou familiares, entre mutas outras -, possam estar comprometidas e requeiram atenção clínica no curso do tratamento.
J – É aí que um psicólogo pode ajudar? Há psicólogos especializados nestas perturbações?
EC – Estas perturbações devem ser abordadas por psicólogos especialistas na área e com treino e experiência na sua avaliação e tratamento. A abordagem clínica passa pela intervenção no controlo da alimentação e por todas as questões que surgirem em terapia e que possam ajudar a organizar a vida (e alimentação) da pessoa.
«Dependendo da perturbação pode não ser fácil para uma pessoa aceitar que precisa de ajuda».
J – É possível traçar um perfil das pessoas que são mais afetadas por este problema?
EC – A resposta mais correta é não, uma vez que as características de personalidade podem ser comuns a outras perturbações psiquiátricas ou até mesmo estar presentes em população normal.
Não obstante, pessoas com perturbações alimentares partilham características de perfeccionismo ou a irritabilidade e dificuldades interpessoais, mas estas serão características partilhadas por muitas outras pessoas.
J – E há uma prevalência de género?
EC – Sim, estas perturbações, apesar de pouco frequentes, manifestam-se principalmente em mulheres (jovens). Ainda assim, estima-se que haja uma proporção de 10:1 (10 mulheres para 1 homem).
J – Quem passa por uma situação destas tem dificuldade em reconhecer que precisa de ajuda? Em que fase é que normalmente chega ao consultório?
EC – Dependendo da perturbação pode não ser fácil para uma pessoa aceitar que precisa de ajuda. A Anorexia Nervosa é habitualmente caracterizada por uma enorme resistência ao tratamento e ao reconhecimento de que há um problema. É frequente quem tem AN sentir-se bem com o controlo que exerce sobre as diferentes áreas da vida. Normalmente, estas pessoas chegam ao consultório “empurradas(os)” por terceiros que estão preocupados.
Na bulimia nervosa, a procura de ajuda pode aparecer quando a pessoa sente que não consegue mais controlar a alimentação sem ajuda externa. Como são problemas associados a grande vergonha, a procura de ajuda pode tardar e a chegada ao consultório acontece muitas vezes já numa fase de grande desorganização pessoal, em que o problema já está instalado no dia-a-dia.
«Pensar muito em atingir um peso idealizado ou em seguir uma alimentação muito rígida implica muito tempo e energia que é consumida enquanto a vida acontece».
J – Conseguem ajudar? Trabalham em conjunto com outros profissionais?
EC – Sim, há tratamento eficaz para estes problemas. O psicólogo e o médico psiquiatra devem colaborar em maior ou menor grau em função da avaliação feita. É frequente e desejável o acompanhamento pelos dois profissionais, mas não é obrigatório.
J – Com o Verão a aproximar-se é sabido que aumenta o número de pessoas a fazer dietas. Que conselhos darias a quem pensa iniciar uma?
EC – Acima de tudo, pensem que o Verão tem muito para aproveitar, para viver, independente do peso que se tem. Pensar muito em atingir um peso idealizado ou em seguir uma alimentação muito rígida implica muito tempo e energia que é consumida enquanto a vida acontece.
Naturalmente que devemos sempre ter em vista uma alimentação e um estilo de vida saudáveis (é bom para a nossa saúde física e psíquica), mas isso não se pode tornar uma obsessão.
Se houver necessidade em reorganizar um plano alimentar para perda de peso, consultem o profissional da nutrição adequado e sigam as indicações, sem nunca restringir a alimentação mais do que é sugerido. O psicólogo ou psiquiatra poderão ajudar se houver questões do foro psicológico que estão a causar muito sofrimento ou que comprometem a tentativa de perda de peso.