Roque Gameiro viveu entre os finais do século XIX e o início do século XX.

Roque Gameiro: a arte como expressão de uma certa visão do mundo

Uma exposição na Casa Roque Gameiro, na Amadora, convida a conhecer melhor a obra e a vida do artista republicano.

Por Alcino Pedrosa*

Para o pintor Alfredo Roque Gameiro, que viveu entre 1864 e 1935, a arte possui uma função muito mais abrangente do que simplesmente ser bela, agradável ou decorativa. Deve representar a realidade que o artista vive, pensa e sente. Em Roque Gameiro, arte e vida são duas realidades que se interligam, quando não mesmo se sobrepõem.

Isso mesmo traduz o título da exposição que pode ser vista até 23 de julho, na casa que o artista nascido em Minde (Santarém) construiu na Amadora, local que escolheu para residir: “Alfredo Roque Gameiro: a Arte como Obra e Vida” (1).

Reunindo obras do Museu José Malhoa, do Palácio Nacional da Pena, do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, da Biblioteca Silva, de particulares e peças novas, incorporadas no acervo da Casa Roque Gameiro, a mostra propõe-nos uma viagem pela vida do artista, permitindo-nos compreender melhor a forma como se processou a sua formação e a relação que estabeleceu com a arte.

A influência de Nieper

Uma das melhores definições da obra de Roque Gameiro foi-nos dada pelo escritor brasileiro Monteiro Lobato, que, no rescaldo das exposições no Rio de Janeiro e São Paulo, escreveu: “Roque Gameiro usa uma linguagem estética, que o leva a estabelecer diálogo com a realidade que o envolve. Utiliza a sua arte para dialogar com as figuras e os ambientes que representa. Estuda-os, compreende as relações que entre eles se estabelecem e apresenta-os como elementos que conferem identidade a um grupo, a uma região e a um país” (2). 

Considerada sob esta perspetiva, a arte exprime uma visão do mundo, que, tendo subjacente uma visão de época histórica e antropológica, reflete uma vida pessoal. Do mesmo modo que não é possível a uma pessoa viver uma vida que não seja a sua, é, igualmente, impossível fazer uma arte que expresse uma vida que não seja aquela que vive.

A arte, como afirmava Ludwig Nieper, é um processo contínuo e inesgotável, porque a vida não cessa, reproduz-se ininterruptamente (3). A ideia professa por Nieper – que Roque Gameiro conheceu em Leipzig, na Academia Real de Artes e Ofícios, onde estudou – foi por ele perfeitamente interiorizada.

O retrato de uma sociedade em mudança

Para o artista português, a arte deve expressar a própria realidade social, ser a representação do momento, cabendo-lhe a si, através do seu olhar e emoções, proceder a este registo, como se cada obra se tratasse de uma página de um diário pessoal. Para concretizar os seus desideratos, faz estudos das paisagens in loco, pesquisa documentos, visita os lugares presumíveis das cenas que pretende representar, elabora croquis dos ornamentos e elementos arquitetónicos, interioriza os costumes, as práticas profissionais e as tradições, visando imprimir a maior fidedignidade aos seus quadros.

Vivendo numa sociedade em mudança, o pintor lê, interpreta e analisa os dilemas do mundo contemporâneo na sua relação com o passado. Nos vários tipos rurais e urbanos que retrata, estão rostos e atores do seu tempo, que refletem a identidade de um povo. Longe de expressarem uma ideia de imobilismo ou a simples valorização do passado, os seus trabalhos deixam perceber uma preocupação em trazer o passado ao presente como forma de perpetuar a memória e de garantir uma identidade à sua obra.

Virgílio Martins Machado, seu aluno na Escola de Arte Aplicada de Lisboa, escreveria: “O Mestre dizia-nos olhai o que vos rodeia. Procurai perceber como a realidade se formou. Deixai que ela inspire os vossos sentidos e deixai que estas imagens vos guiem. Percebereis, assim, melhor o mundo em que viveis e interpretareis mais ajustadamente o papel que a arte deve ter. A arte não pode ficar insensível aos contributos das novas ciências que nos ensinam a olhar para o homem e a realidade que o envolve.” (4)

A arte como caminho para a Educação

Ao visitar a exposição Alfredo Roque Gameiro: a arte como obra e vida, somos conduzidos numa viagem pelos percursos seguidos pelo artista, que o levaram de Minde a Lisboa, passando por Leipzig, Paris, Praga e Amadora. Focamo-nos, num primeiro momento, em Leipzig, onde estudou. Ficamos a conhecer o modo como interiorizou a sua aprendizagem e a projetou na sua obra. Ao fazê-lo, percebemos o universo das sensações, representações e responsabilidades, que enformaram o seu trabalho e entendemos porque, para ele, a arte deve ser muito mais do que um simples fruir da beleza. O artista é portador de uma visão e criador de um ato responsável que o compromete perante a sociedade.

Por isso, para além do artista, a exposição valoriza o professor, que, nas escolas por onde passa e no seu ateliê oficina, atribui à arte uma função importante como fator de conhecimento e elemento construtor de uma memória coletiva. Alfredo Roque Gameiro vê na arte um caminho para a educação. Interessa-lhe que a arte não seja fruída apenas por uma minoria, mas que contribua para a educação de uma população, parte da qual vive numa situação miséria que não é apenas económica, mas também espiritual.

A terceira estação desta viagem situa-nos no modo como o artista se relacionou com a sociedade. Vivendo entre dois mundos em que um que já sabe que vai acabar e outro, cujos contornos ainda não sabe definir, mas pressente inevitável e que acabará por acontecer a curto prazo, assume as suas fortes convicções republicanas. Não fica indiferente às convulsões que atravessam a sociedade portuguesa. Defende publicamente a participação de Portugal na I Guerra Mundial, que considerava movida por imperativos patrióticos. É um dos dinamizadores do grupo que promove, na Amadora, em 1909, a Festa da Árvore, uma iniciativa que, desde 1907, vinha sendo replicada em vários pontos do país, por iniciativa do Partido Republicano. Evidencia o seu comprometimento com a sociedade em que vive.

Monteiro Lobato, após assistir à exposição do Rio de Janeiro referiu que a arte se instalou de forma permanente na vida de Roque Gameiro. Esta afirmação, não sendo errada, está longe de ser completa. A arte impregnou a existência do artista, assumindo-se como um elemento fundamental do processo de construção da sua vida e da sua consciência.

Uma exposição que é um convite a conhecer melhor a obra deste artista português e, com ela, o Portugal de finais do século XIX, inícios do século XX.

Referências:

  1. Exposição patente na Casa Roque Gameiro, Amadora. Organização: Câmara Municipal da Amadora. Comissariado, pesquisa e elaboração de textos: Alcino Pedrosa;
  2. Lobato, João Bento Renato Monteiro (1921). Artistas Portugueses em Terras de Vera Cruz. São Paulo, edição de autor, p. 22;
  3. Nieper, Ludwig Springer. Anton (1890). The Royal Art Academy and School of Applied Arts in Leipzig. Festschrift and official report.  With a scientific treatise on “the tasks of the graphic arts”. Leipzig, Drugulin, p.5;
  4. Machado, Virgílio Martins (1945). Memórias de um gravador. Lisboa, edição de autor, p. 18.

Fotos: D.R.

(*) Professor do ensino secundário. Investigador do Laboratório de História, Territórios e Comunidades. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

Deixa o teu comentário.

O teu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *