Depois do 25 de Abril, a música é outra: as mulheres também tocam na banda
A lei não o proibia, mas até à Revolução de 1974 só havia quase elementos masculinos nas bandas de música
Por Bruno Madureira (*)
A situação política, económica, social e cultural de Portugal nas décadas de cinquenta, sessenta e inícios de setenta, influenciou de forma considerável a vida musical do país e a atividade das filarmónicas em particular. Fenómenos como a emigração e a guerra colonial contribuíram de forma mais ou menos significativa, consoante os casos, para uma menor disponibilidade de recursos humanos − nomeadamente instrumentistas − nas bandas civis, sobretudo nos meios rurais, as regiões onde o impacto destes fenómenos terá sido maior, face ao progressivo êxodo. Outros fenómenos sociais e culturais, tais como, as alterações dos gostos e preferências musicais de uma parte dos jovens, a disseminação de grupos e conjuntos musicais alternativos às bandas ou o aparecimento de novas formas de passatempo, terão igualmente contribuído para uma menor disponibilidade de músicos nas bandas, sobretudo nos meios urbanos.
Efetivamente, o fenómeno mais relevante e influenciável da atividade das filarmónicas, no período considerado, foi o grau de disponibilidade de executantes nas bandas, um fenómeno influenciado por vários motivos, embora de relevância distinta. No ano de 1971, 386 das 420 bandas inquiridas pela Secretaria de Estado de Informação e Turismo (SEIT) revelaram estar desfalcadas de elementos, enquanto apenas trinta e quatro consideraram-se completas. A disponibilidade de recursos humanos nas filarmónicas estava relacionada, não só com o abandono de músicos da banda − devido, sobretudo, à sua emigração e mobilização para a Guerra do Ultramar − mas também com a dificuldade de captação de potenciais aprendizes. Segundo aquele inquérito da SEIT, em 367 bandas o recrutamento de músicos era considerado difícil, em trinta e sete era fácil, e somente em seis razoável.
Uma exceção a confirmar a regra
Outro dado digno de referência é a faixa etária dos executantes, maioritariamente elevada, sendo escasso o número de crianças e jovens. Ainda relativamente à caracterização humana das bandas civis, no período em consideração, eram constituídas genericamente por elementos do sexo masculino, não só nas funções de intérprete, formador e compositor, como nas de liderança (regente e dirigente). Todavia, em meados da década de sessenta, numa filarmónica do distrito de Aveiro – a Banda Santa Cruz de Alvarenga − o défice de executantes foi colmatado com a admissão de elementos do sexo feminino, um fenómeno que só muito mais tarde foi tomado como exemplo noutras congéneres. A razão pela qual as mulheres foram incentivadas a ingressar na banda foi a iminência de esta se extinguir, face à escassez de homens: “as mulheres tomaram a resolução de substituir os homens na filarmónica local para que ela se não extinguisse” (O Miradouro, 21-10-1966).
Contudo, este foi um caso isolado e é o único conhecido a nível nacional de participação feminina em filarmónicas. O estudo de caso realizado no âmbito do nosso doutoramento, com as filarmónicas dos municípios de Cinfães, Águeda, Fundão e Oeiras, enquadra-se no panorama nacional pois não encontrámos elementos femininos durante o terceiro quartel do século XX em quaisquer dessas filarmónicas.
A emancipação feminina também chega às bandas
Após um quarto de século que consideramos genericamente de decadência ou de estagnação teve início, a partir de meados dos anos de 1970 e sobretudo no decénio seguinte, uma fase de florescimento ou revitalização das filarmónicas, pese embora a persistência de alguns problemas. Essa revitalização deveu-se a uma conjugação de fatores, dos quais, a maior disponibilidade de recursos humanos teve particular importância e foi alcançada devido, não só à atração que a banda passou a exercer gradualmente nos jovens do sexo masculino, como à sua abertura ao sexo feminino.
Efetivamente, a emancipação da mulher na sociedade portuguesa após a Revolução de 1974 potenciou uma maior participação desta nas mais diversas atividades profissionais, sociais e lúdicas, incluindo nas bandas civis. O ingresso de elementos femininos nas filarmónicas alterou socialmente estes agrupamentos musicais, nomeadamente, em relação às alterações comportamentais dos homens e a nível logístico pois foi necessário, por exemplo, fardamento diferenciado. Todavia, pese embora a sua importância em termos sociais, o grande contributo destas foi no âmbito artístico. Face à escassez de elementos masculinos as mulheres, progressivamente, colmataram as lacunas existentes em vários naipes, e a médio prazo tornaram-se o sexo predominante em muitos destes grupos musicais, sobretudo nas regiões centro e sul. O caso das filarmónicas sediadas nos municípios de Cinfães, Águeda, Fundão e Oeiras não diferiu de forma significativa do panorama nacional atrás apresentado pois foi após a revolução democrática que sucederam os primeiros ingressos de elementos femininos.
Uma questão social e cultural…
No âmbito das bandas militares o fenómeno do ingresso de músicos do sexo feminino foi mais tardio face às congéneres civis, uma consequência, possivelmente, do conservadorismo associado à instituição militar. A primeira banda militar a integrar elementos femininos foi a Banda de Música da Força Aérea, em 1992, seguida da congénere do Exército, no mesmo ano. Nas congéneres da Armada e da Guarda Nacional republicana tal sucedeu somente em 2002 e 2008, respetivamente. Este fenómeno está relacionado com a interdição de mulheres, até 1992, nas Forças Armadas Portuguesas.
Da análise dos dados recolhidos no contexto do nosso estudo de casos constatámos a exclusividade de elementos do sexo masculino nas filarmónicas até à revolução de 25 de Abril de 1974, não só nas funções de intérprete, formador e compositor, como nas de liderança (regente e dirigente). Embora os estatutos das bandas não as interditassem – nem houvesse qualquer impedimento ou proibição do ponto de vista legislativo −, a inclusão de mulheres nas bandas não era socialmente bem aceite nem era do agrado de alguns homens, pois, consideravam que lhes retiravam privacidade. Igualmente a nível nacional são poucos os casos de participação feminina em filarmónicas que tenhamos conhecimento. A não participação de mulheres nas bandas foi sobretudo uma questão social e cultural associada a uma sociedade conservadora regida por um regime ditatorial patriarcal e discriminatório para com as mulheres onde, por exemplo, não era habitual as mulheres misturarem-se com homens, incluindo nas escolas.
Os dados obtidos demonstram-nos também uma participação significativa de mulheres nas bandas civis após a revolução democrática, sobretudo ao longo da década de oitenta, um fenómeno que está relacionado com o seu processo de emancipação na sociedade portuguesa ocorrido após a ditadura e extensível a outras áreas da sociedade.
Referências:
- Madureira, Bruno (2020). Bandas Civis no Terceiro Quartel do Século XX: Estudo de Casos com as Filarmónicas de Quatro Concelhos. Tese de Doutoramento apresentada à Universidade de Coimbra.
- O Miradouro, Ano 5º, nº 221, 21-10-1966.
- Ribeiro, Margarida (1971). “Relatório da Secção de Etnografia e Sociedades Recreativas”, Trabalho apresentado no I Colóquio de Bandas de Bandas Civis e Filarmónicas, não publicado, Santarém.
(*) Investigador do HTC-CFE, NOVA FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.