Interior da fábrica – oficina da costura, Fábrica de material de guerra, Lisboa, Portugal | Fotografia de Estúdio Mário Novais, sem data. Arquivo da Gulbenkian

Mulheres e trabalho: uma história de invisibilidade

A experiência feminina esteve quase sempre ausente da análise histórica tradicional. E as mulheres operárias não foram exceção.

Por Catarina Veiga dos Santos*
Durante longos anos, a análise histórica tradicional desconsiderou a mulher como sujeito histórico, ao não ter em conta a experiência feminina. A História foi muitas vezes contada somente na perspetiva do homem, embora tenha sido apresentada como a “História da Humanidade”. Por as mulheres terem sido “invisíveis” durante séculos, escrever a sua história é um grande desafio. Elas não estão presentes em grande parte da documentação histórica que usamos para perceber melhor o passado, pois só na segunda metade do século XX começaram a ser estudadas. Esse estudo constituiu um passo muito importante para a emancipação da mulher e para a igualdade de género, dando-lhe voz e visibilidade, integrando-a no espaço público, na nossa memória colectiva e na nossa história.

No caso do operariado feminino o silêncio da documentação é “ensurdecedor”. Estas mulheres, cidadãs comuns, não deixaram relatos da sua vida. São, por isso, mais difíceis de encontrar nas fontes documentais, nos arquivos e nas bibliotecas. A existência das mulheres operárias é, no entanto, inegável. E é exactamente por isso que é necessário contar a sua história. Neste artigo vamos retratar as experiências e as percepções destas mulheres operárias durante a I Républica e no Estado Novo.

A mulher na Indústria Portuguesa

É a industrialização que introduz no mundo contemporâneo o problema da mulher trabalhar. Antes, os ofícios exercidos pelas mulheres não eram reconhecidos como profissões, sujeitas a remuneração. Elas eram apenas as “ajudantes dos maridos”, auxiliando-os nas profissões que eles desempenhavam. A mulher esteve sempre inserida no mundo do trabalho, mas foi só no século XIX que o operariado feminino ganhou mais relevância e visibilidade, tendo passado a ser retratado pelas fontes como nunca tinha sido anteriormente. A invisibilidade verificada até aqui justifica-se pelo facto da mulher trabalhadora ser encarada como um problema na sociedade de então: uma mulher trabalhar era algo até então visto como uma afronta aos conceitos e padrões de feminidade e de moralidade da época.

No início do século XIX a indústria portuguesa ocupava cerca de 21% da população ativa, sendo ainda rudimentar do ponto visto material e da técnica. Era maioritariamente composta por artesãos e pequenos proprietários que tinham como mão de obra a sua própria família, trabalhando no domicílio e ainda ligados diretamente à agricultura (nos restantes países da Europa este tipo de indústria já tinha desaparecido). Só cerca de 1/5 da população activa na indústria trabalhava numa unidade fabril com mais de 50 trabalhadores. Em 1907, o Ministério das Obras Publicas afirmava que existiam 25.820 mulheres operárias no total de 85.600 operários portugueses e o trabalho feminino no sector da indústria dividia-se entre aquele que era realizado na fábrica e o da indústria caseira.

O aparecimento de legislação para o trabalho feminino

Apesar de atrasada em relação à Europa, a indústria portuguesa foi crescendo. De 1900 para 1910 registou-se um aumento de 18% e, nas décadas seguintes, esse aumento continuou, com as pequenas unidades artesanais a darem lugar às fábricas. À medida que a indústria foi crescendo, a República foi produzindo legislação sobre o trabalho feminino. Passou, por exemplo, a ser proibido às mulheres o trabalho em certas indústrias tóxicas, o trabalho noturno em estabelecimentos com mais de dez trabalhadores, e ficou estipulado onze horas consecutivas de descanso. Através dos censos de 1910 conseguimos ver que existiam em Lisboa 155.197 mulheres empregadas na indústria, o que se traduz em 22% da população empregada nesse setor na capital.

Após a Grande Guerra, deu-se um surto industrial em Portugal, o que significou um aumento do operariado. A maior parte da mão de obra feminina concentrou-se nas indústrias têxtil, de vestuário e alimentar – em Lisboa, a mulher operária também se enquadrou neste panorama, havendo, no entanto, também um grande número (cerca de ¼) de operárias nos sectores químicos, da cortiça e do tabaco. Estas mulheres encontraram, porém, resistências à sua presença nas fábricas: o trabalho feminino na indústria foi encarado pelos homens como uma ameaça direta aos seus postos de trabalho.

Na ideologia do Estado Novo o espaço idealmente imaginado para a mulher não era a fábrica, ou até qualquer outro local de trabalho que não a casa. O Estado Novo pretendia que a mulher voltasse para o lar, para ocupar o seu papel de mãe e esposa, e acreditava que o espaço ideal para a mulher era no seio da família. Um dos maiores objetivos do regime, no campo moral, foi o do retorno da mulher ao lar. A mulher só trabalhava porque o seu agregado familiar necessitava do seu rendimento.

As mulheres operárias na resistência

As condições de trabalho e de vida destas mulheres eram duras, as operárias tinham as tarefas e as funções mais mal pagas. Ganhavam muito menos do que os homens, apesar de terem muitas vezes a mesma função que estes. Algumas participaram activamente na luta política contra o Estado Novo e pela melhoria das suas condições de trabalho. Uma das fontes que podemos usar para estudar a sua resistência à ditadura é a impressa clandestina, sendo o exemplo mais conhecido o Jornal Avante!, um dos órgãos centrais do Partido Comunista Português, cuja primeira edição é de 15 de Fevereiro de 1931 (não sendo o primeiro jornal ligado ao PCP).

Operárias da indústria têxtil, em frente do palácio de São Bento onde foram entregar à Assembleia Constituinte um pedido de horário de 8 horas e de outras regalias | Fotografia: Joshua Benoil, 1911. Arquivo de Lisboa: Arquivo Fotográfico

Nestes jornais, são-nos dados a conhecer relatos e vivências de resistência feminina através de várias noticias e de colunas dedicadas a narrar a vida nas fábricas. Fala-se das más condições de trabalho, dos despedimentos, das greves e dos protestos, criticam-se os métodos de trabalho e celebram-se as conquistas dos trabalhadores. Na imprensa clandestina podemos ver ainda retratadas as vivências de várias mulheres operárias. Relatam situações de assédio por parte dos responsáveis às operárias mais novas, entre outros problemas recorrentes do operariado feminino. Para os leitores, a mensagem passada é a de que a mulher deve intervir nos movimentos de resistência à ditadura, como fica claro na seguinte passagem:

“Existe só um caminho para a mulher laboriosa portuguesa resolver os seus angustiosos problemas! A luta decidida ao lado dos seus companheiros, pais, filhos, irmãos, pelo derrubamento do governo do assassino e traidor de Salazar, causador da miséria do povo. A mulher deve lutar nas empresas contra a exploração brutal do patrão, exigindo o aumento do seu salário em relação ao aumento do custo de vida (…). Deve conquistar e mobilizar para a causa os irmãos, companheiros, pais, filhos, levá-los a lutar decididamente ao seu lado pela causa que é também dele. A mulher operária deve colocar-se ao lado dos homens que lutam pela instauração de um governo popular, porque só este lhe poderá dar Pão, Paz e a Liberdade. Mulheres operárias! Lutemos sempre e por toda a parte!”

Tribuna do leitor: “As operárias da fábrica Simões lutam pelos seus direitos” in Avante!. – S. 6, nº 266 (1ª Quinz. Nov. 1958), p. 3
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Textos como este, publicado no jornal Avante!, ou outros que atrás referimos – como o documento do Ministério das Obras Públicas – mostram como, aos poucos, a mulher foi conquistando um lugar como sujeito histórico e a História a aproximar-se mais de ser uma verdadeira “História da Humanidade”.

Foto de abertura:
Interior da fábrica – oficina da costura, Fábrica de material de guerra, Lisboa, Portugal | Fotografia de Estúdio Mário Novais, sem data. Arquivo da Gulbenkian

(*) Investigadora do HTC-CFE, NOVA FCSH. Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.

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