Redações calam escândalo no jornalismo português
O plágio costuma ser notícia. Desta vez, a notícia é que… o plágio não foi notícia.
Por Joana Fillol
Se não sabes o significado da palavra “plágio”, a Infopédia dá uma ajuda: “DIREITO apresentação que alguém faz de obra ou de trecho de obra (literária, científica, musical, artística, etc.) da autoria de outrem como sendo de sua própria autoria; plagiato”. Este dicionário online acrescenta ainda que o plágio é uma “imitação fraudulenta (de obra alheia)”.
Na realidade, o plágio é como um roubo, mas em vez de estar em causa um bem material, palpável, como uma bicicleta ou uma carteira, está em causa um bem imaterial, geralmente um texto. Por exemplo, se um estudante, para fazer um trabalho escolar, vai à Internet e copia informação de lá sem a colocar entre aspas e sem mencionar a origem (ou seja, a fonte), isso é plágio.
Na verdade, o plágio é mesmo um crime punível por lei. A Deco Proteste, a maior organização portuguesa de defesa dos direitos dos consumidores, de que talvez já tenhas ouvido falar, explica neste artigo que a pena pela prática de plágio pode chegar mesmo aos três anos de prisão.
Se fores ao site de um qualquer jornal e escreveres plágio no campo de pesquisa, encontras uma série de notícias sobre casos que aconteceram, uns mais recentes, outros mais antigos. Talvez te lembres de, em fevereiro de 2018, ouvir falar de plágio nos jornais, nas rádios e nas televisões, porque o cantor Diogo Piçarra foi acusado de ter plagiado a música com que estava então a concorrer ao Festival da Canção.
Uma notícia ao contrário
Por ser então considerado um acto de enorme gravidade, os casos de plágio são muitas vezes noticiados nos órgãos de comunicação social, sobretudo quando são praticados por figuras com alguma notoriedade.
Desta vez, no entanto, a notícia é que, como escrevemos no superlead (é assim que se chama em jornalismo à frase que sintetiza o essencial da informação no topo de um artigo, logo a seguir ao título), o plágio não foi notícia.
O que é que aconteceu afinal?
O “Público” é um dos principais jornais portugueses. No domingo, dia 18 de setembro, um jornalista deste jornal escreveu uma crónica em que copiava partes inteiras da crónica de um outro jornalista espanhol, do jornal “El País”, uma publicação de referência em Espanha. Trata-se, portanto, de um caso de plágio entre dois dos maiores jornais da Península Ibérica.
Uma leitora do Público que, por acaso, também é jornalista (e que, por acaso também, é a diretora deste jornal online, o JORNALÍSSIMO, que desde 2015 tenta encontrar o seu espaço no jornalismo português, explicando de forma contextualizada e com uma linguagem acessível as notícias que marcam a atualidade a crianças e jovens) detetou esse plágio.
Consciente de que estava perante uma situação muito grave, escreveu de imediato ao autor do artigo, ao diretor do jornal e ao provedor do leitor do “Público”(noutro artigo explicaremos quem é e qual a importância desta figura).
O Código Deontológico do Jornalista
Aquilo que a jornalista encontrou surpreendeu-a especialmente por estar a ser feito por um jornalista. A profissão de jornalista não pode ser exercida por qualquer pessoa. Para se ser jornalista é necessário ter-se uma Carteira Profissional de Jornalista e a posse desse título significa o cumprimento de uma série de regras. Se um jornalista não cumprir essas regras, há um órgão – a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista – que pode retirar o título profissional e o jornalista deixa de poder exercer essa profissão.
Essas regras que constam do Código Deontológico do Jornalista estão num documento que só tem onze pontos. Se quiseres, podes lê-lo aqui, na íntegra, em dois minutos apenas.
Foste ler? Exato! No ponto 2, a questão do plágio é abordada: “o jornalista deve (…) considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais“.
Um plágio a circular livremente na rede
A leitora (que, por acaso, é a pessoa que está a escrever este artigo – e pede desculpa por estar a falar de algo que ela fez como se tratasse de outra pessoa, mas de facto esta é uma circunstância excecional, rara, que em seguida te explicamos), ao avisar o jornal, pensou que este retiraria o artigo em causa imediatamente da sua edição online (a crónica também tinha sido publicada na edição impressa, mas daí já não era possível retirá-la).
Não foi isso que aconteceu, apesar de, quer o jornalista, quer o diretor do jornal, lhe responderem à denúncia que fez de plágio e reconhecerem o erro.
O caso é bastante complexo e por isso vamos abreviá-lo, mas se tiveres interesse podes ler a história completa, com todos os detalhes, aqui.
Retificar, retificar, retificar
Se leste os 11 pontos do Código Deontológico do Jornalista, viste também o ponto 5, onde se estabelece que “o jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e atos profissionais, assim como promover a pronta retificação das informações que se revelem inexatas ou falsas“.
Daí a leitora ficar surpreendida que o artigo não fosse retirado do site do jornal e, mais ainda, que ele continuasse disponível e a circular online sem conter uma nota da direção do jornal, comunicando a quem lesse o artigo que estava a ler um conteúdo plagiado.
Se o plágio é grave quando cometido por qualquer pessoa, a gravidade é ainda maior quando ele é feito por um jornalista e por um jornal, porque estes têm uma obrigação para com os leitores de contar sempre a verdade.
O comportamento exemplar por parte dos jornalistas é ainda mais necessário no mundo de hoje, em que a Internet veio permitir uma maior facilidade de circulação da informação, mas também da desinformação (Rojecki & Meraz, 2016). Sabias que um estudo feito por uma prestigiada universidade norte-americana mostrou que a desinformação circula a uma velocidade muito mais rápida nas redes sociais do que as notícias? Isso será tema para um outro artigo sobre a desinformação.
Da sociedade de massas à sociedade em rede
A ideia com que é importante que fiques é que, hoje em dia, qualquer pessoa pode publicar informação porque vivemos na chamada “Sociedade em Rede“ (este termo foi cunhado por um sociólogo espanhol, Manuel Castells). Mas nem sempre foi assim. Até há não muitos anos, nem todas as pessoas tinham facilidade em produzir conteúdos e pô-los a circular na Internet.
Antes da chegada da World Wide Web, o mundo viveu na chamada “Sociedade de Massas” (quem lhe deu este nome foi um filósofo, o canadiano Marshall McLuhan). Nessa época, havia um número restrito de pessoas a produzir conteúdos (os produtores) para uma massa enorme de pessoas (os recetores). A informação que circulava estava sujeita a um maior crivo ou filtro. E, já havendo desinformação, ela circulava numa escala muito menor, pois os conteúdos difundidos eram alvo de muito maior controle, reflexão e eram produzidos, na sua maioria, por pessoas especialistas nos conteúdos que divulgavam.
Hoje qualquer pessoa pode ser ao mesmo tempo produtor e recetor de informação e, por isso, há quem fale em prosumers (uma junção das palavras producers e consumers, ou seja, produtores e consumidores). Esta palavra foi inventada por um escritor norte-americano chamado Alvin Toffler.
A diferença entre a informação jornalística e a restante informação
Na “sociedade em rede” que habitamos e onde todos os dias somos bombardeados por enormes quantidades de informação, o jornalismo deve assumir-se como um porto seguro. Isto é, como um espaço onde as pessoas que se interessam em estar a par do que se passa no mundo, sabem que vão encontrar informação de confiança, porque os jornalistas têm sempre que verificar a informação antes de a publicar, ouvir as várias versões sobre o mesmo assunto e tentar apurar a verdade.
“E os jornalistas nunca cometem erros?”, poderás estar a questionar-te. Naturalmente que sim. Os jornalistas são humanos e os humanos erram. Face aos outros conteúdos que circulam, por exemplo, nas redes sociais, o jornalismo distingue-se por dar ao leitor a certeza de que, se um jornalista errar, ele vai assumir o erro, dizer onde errou, quando errou e repor a verdade dos factos.
Já imaginaste um mundo sem jornalismo?
Se a confiança no jornalismo se perde, as pessoas ficam, de certo modo, desprotegidas. Isso acontece em muitos países. Nas ditaduras, o jornalismo não existe. É um pseudo-jornalismo porque está apenas a passar à população a informação que interessa a quem está no poder.
Foi assim em Portugal durante a ditadura do Estado Novo. É assim, ainda hoje, em países como a Rússia, onde os cidadãos, neste preciso momento, por exemplo, apenas têm acesso a uma parte da história (a versão do presidente Vladimir Putin) sobre a guerra contra a Ucrânia.
Jornalismo e Democracia
O jornalismo é protegido por lei precisamente porque um mundo sem jornalismo de qualidade e de confiança se torna muito permeável a ditaduras ou a políticos populistas que dizem o que as pessoas querem ouvir, mas que, na verdade, têm em mente a instauração de regimes pouco democráticos.
Uma professora de Português do Agrupamento de Escolas do Cerco, no Porto, Paula Cruz, explicava há dias aos alunos o que era populismo com esta simples frase: “Imaginem que eu sou a presidente da escola e digo aos alunos ‘a partir de agora só há aulas nos dias ímpares”…
Ou seja, a imprensa é um dos pilares em que a democracia assenta. E o jornalismo é um bem que pertence à sociedade como um todo e não apenas aos jornalistas. Há muitos autores que estudam o jornalismo e sublinham este aspeto. Os cidadãos de um país têm também que lutar por ter um jornalismo de qualidade. São responsáveis, eles também, se não fizerem nada quando veem que os jornalistas não estão a cumprir o seu papel.
Um senhor chamado Marquês de Mirabeau disse um dia que a Liberdade de Imprensa é “a mais intocável, a mais incondicional liberdade, sem a qual as outras nunca poderão ser asseguradas”.
As outras liberdades são, por exemplo, a liberdade de pensamento, de opinião ou de expressão. Como posso eu formar realmente uma opinião se só metade dos factos me forem contados?
A cacha jornalística
Na gíria jornalística, a “cacha” designa uma notícia que é dada por um jornal em exclusivo. Ou seja, uma notícia que um jornal tem e todos os outros não têm. Todos os jornalistas gostam de conseguir uma boa “cacha”, ou seja, de serem os primeiros a dar uma notícia.
E nós vamos dar-te aqui no Jornalíssimo uma “cacha”. Mas, por mais incrível que te possa parecer, esta “cacha” já foi comunicada aos principais órgãos de informação noticiosa deste país.
Na tarde de ontem, segunda, dia 3 de outubro, a diretora (e na verdade, infelizmente, única jornalista do Jornalíssimo) escreveu, telefonou e enviou mensagens aos maiores órgãos de comunicação social deste país, menos ao jornal Público (pelas razões que se leres a história toda no link que te deixei acima irás perceber): à Agência Lusa, à RTP e à RDP, que são órgãos de comunicação social de serviço público (ou seja, pagos por todos nós cidadãos e, como tal, com deveres acrescidos), mas também ao JN, ao DN, à TVI e à CNN, à SIC, à CMTV, ao Observador, ao Expresso, às revistas Sábado e Visão. Escreveu a alguns conhecidos jornalistas da nossa Praça. Falou até com a correspondente em Portugal do jornal espanhol “El País”, a saber se estaria interessada em dar esta “cacha”.
Ou seja, o que foi incialmente um erro grave, tornou-se num problema gravíssimo, no meio do qual, o plágio incial já parece um problema menor.
O que estava escrito neste artigo a partir daqui poderia, também, ser considerado uma violação do Código Deontológico do Jornalista por ir de encontro ao estabelecido no final do ponto 1 desse documento, onde se lê: “A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.” A jornalista que assina este artigo estava, na altura em que o escreveu, demasiado exaltada e indignada. Esse seu estado de espírito resultava de julgar estar perante uma história com interesse para os cidadãos e as cidadãs portuguesas e ver que nenhuma das redações que contactou, nem dos jornalistas a quem escreveu, dando conta deste caso, se interessaram por noticiá-lo. Pelo contrário, tentaram demovê-la da tentativa de trazer o ocorrido no jornal Público para o debate público. Na altura, o Jornalíssimo não tinha uma secção de opinião. Entretanto, ela foi criada para que o que escrevemos no final deste artigo pudesse estar no sítio onde deve: um espaço de opinião. Podes ler o que estava originalmente escrito a partir daqui neste novo artigo de opinião, a que demos o título do subtítulo com que iniciámos a parte opiniativa. Com esse sub-título pretendemos, logo, já neste artigo publicado a 4 de outubro, deixar bem clara a diferença entre o que era notícia (o que está escrito até aqui) e o que era opinião (a parte em que nos dirigimos especificamente àquele que é o público-alvo do Jornalíssimo: as crianças e os jovens). Porém, com algum distanciamento temporal, pareceu-nos importante que essa diferenciação fosse mais explícita, e essa parte estivesse numa página isolada, onde o termo ‘Opinião’ estivesse claramente identificado. Pelo ocorrido, pedimos desculpa aos nossos leitores e leitoras.
Foto: Pxhere
Cara Joana Fillol,
Excelente atitude que em tudo dignifica o verdadeiro Jornalismo. Ver o que se passou com a direção do jornal em causa, a frágil e inconsequente justificação do injustificável, só lhe vem dar razão e a certeza de que, desde o primeiro momento, fez o que o que a sua consciência lhe ditou. E o dever.
Aqui na escola já discutimos muito esta questão, abrimos debate e ouvimos opiniões. Como educadores, lutamos diariamente contra o “copy/paste”, uma versão mais preguiçosa do plágio, mas parente por afinidade e entranhada na sociedade a pontos de parecer normal.
Ainda que o caso seja grave, a forma sensacionalista e simplista como está descrito deixa muito a desejar. Sim é importante denúnciar o plágio é também importante não tomar a parte pelo todo, esquecendo anos de trabalho e é sobretudo importante acabar com esta fome de julgamento público e quem sabe de alavancagem com interesse apenas pessoal. Se o plágio é infeliz, esta descrição não o é menos já que além de procurar a segurança dos leitores procura ser danosa e isso é feio, até para a jornalista. Feitas as contas o trabalho do referido jornalista trouxe nos muito mais valor acrescentado do que um plágio e em favor da verdade e da proteção da democracia e dos leitores isso também deve ser identificado. De outra forma este não passa de mais um artigo de desinformação.