Gil Aroso treina para vir a ser um Federer
Aos 14 anos, a paixão pelo ténis leva-o a viver fora de casa, numa Academia, e a trocar a escola normal por aulas à distância.
Gil Aroso começou a dar os primeiros passos no mundo do ténis com apenas dois anos. Isto literalmente… Acaso ou prenúncio, foi num court que este tenista portuense de 14 anos, aspirante a jogador profissional, começou a andar. Para dar os primeiros passos no ténis em sentido figurado foi preciso esperar um pouco mais. Mas não muito. Ele conta tudo abaixo.
Aproveitemos estas linhas, antes da entrevista, para escrever o que Gil não conta. Apesar das vitórias e distinções já serem algumas, modéstia e humildade são duas palavras que parecem caraterizar o jovem atleta, de sorriso simpático e ar descontraído.
Se não tivéssemos falado uns minutos com o pai de Gil, Nuno Aroso, não ficaríamos a saber, por exemplo, que a prateleira onde tem taças (só em dezembro ganhou três) e medalhas está a ficar pequena para a quase meia centena que Gil já conta. Também não teríamos sabido que a Wilson lhe dá desconto em raquetes; que já um Clube de Ténis e duas Academias lhe proporcionaram condições especiais para ele treinar ou, ainda, que aos 13 anos foi dispensado de um mês de aulas por ser “atleta com potencial desportivo” (e nem assim, e nem treinando várias horas por dia, perdeu o lugar no quadro de excelência da escola que frequentava, acrescente-se).
Se quando pensamos em atletas nos lembramos acima de tudo da condição física, a diferença que faz alguém destacar-se dos demais pode, no entanto, estar na cabeça. Parece ter sido esse o caso de Gil Aroso. Os treinadores foram vendo nele uma capacidade muito grande de resistir perante as adversidades, de superar-se, de sofrer até ao limite. O que é limite? “Com dores na mão, com dores no pé, com sangue, nunca o vi desistir”, conta o pai. O outro aspeto que chamou a atenção dos “olheiros” do ténis foi o foco para alcançar os objetivos a que se propõe. Foram estes ingredientes todos juntos – e somados com as capacidades físicas, naturalmente – que levaram Gil para um caminho de treino intensivo que o pode conduzir à profissionalização. Sim, “pode”. Certezas não há. E Gil sabe-o.
Falámos com ele em Matosinhos, no final da manhã de um sábado soalheiro, mas gelado. Ele não parecia ter frio. E nem casaco levava posto. Tinha terminado de treinar não há muito tempo, em Espinho e, depois da entrevista, esperava-o uma tarde e um domingo de descanso, com os pais e a irmã, de seis anos. Mostrou-nos os calos que tem na mão de pegar na raquete e só se queixou de uma coisa: de faltarem apoios – do Estado ou de empresas – para atletas como ele. É que treinar para vir a ser um Federer é muito dispendioso e os prémios das vitórias ainda não são chorudos.
Jornalíssimo – Como é que começou a tua relação com o ténis?
Gil Aroso – Tinha 8 anos e o pai de uma amiga convidou-me para um treino, para experimentar a ver se gostava. Não me lembro muito bem se gostei logo, mas acho que se não tivesse gostado, não estava a jogar agora! Ainda com 8 anos inscrevi-me no Clube de Ténis do Porto. É engraçado, foi por acaso [que tudo começou] e agora é uma coisa de que gosto tanto.
J. – O que torna o ténis tão especial para ti?
G.A. – É que é um desafio permanente estar a jogar. É preciso estar lá, estar bem quer fisicamente, quer mentalmente. É muito difícil sempre, mas acho que isso é o que faz o ténis divertido. Claro que gosto muito de jogar torneios e gosto muito de treinar. Sei lá… O que eu mais gosto é da vida do ténis, como funciona…
J. – E como é essa “vida do ténis”, como é para ti um dia normal?
G.A. – É divertido. Acordo por voltas das seis e meia, tomo o pequeno-almoço e começo a treinar às sete e um quarto. Depois tenho um treino de duas horas, em que a primeira hora é cardio no ginásio e a segunda é no court. Fico a treinar até às nove e meia, uma hora com o meu treinador e com os outros colegas que também estão lá a treinar.
J. – São da tua idade?
G.A. –Há dois mais velhos e dois da minha idade. Estamos só cinco a treinar [três rapazes e duas raparigas]. Às nove e meia tenho aulas, até à hora de almoço [ver caixa “Como é estudar à distância?” no final deste artigo]. Às vezes, depois do almoço ainda tenho uma aula, depende do dia. E tenho treino de novo [no court] às três ou três e meia. Depois, às seis, faço uma hora, hora e meia de ginásio. E às vezes ainda tenho uma aula de ioga em seguida. É bom para alongarmos e tratarmos do corpo. Depois janto e vou dormir lá para as dez, dez e meia. Claro que no Verão treinamos mais porque não temos aulas. Agora, em média, treino cinco, seis horas por dia.
J. – Algo que seria impensável fazeres se não estivesses numa Academia…
G.A. – Sim, era impossível.
J. – Mas dedicares-te a este nível a um desporto supõe certamente abdicares de muitas coisas…
G.A. – Claro! De viver em casa! E não é como na escola normal, que estamos com muitos amigos. É diferente o convívio. Tenho sempre os colegas de treinos, mas não é a mesma coisa, são menos pessoas, somos sempre os mesmos. Não é a vida que a maior parte das pessoas da minha idade faz. Nos tempos livres eu fico a treinar. É um bocado diferente…
J. – E é um sacrifício para ti?
G.A. – Não. Não é porque é o que eu gosto de fazer.
J. – No ano passado, entre junho e setembro, estiveste pela primeira vez a viver numa academia de ténis, nas Caldas da Rainha. Como é que foi?
G.A. – Foi uma experiência boa. Há vários atletas, de vários níveis, são muito bons quase todos. Uns são de lá de perto, outros vêm de todo o país. Há vários que ficam lá a dormir. Mas, por acaso, na altura em que lá estive era o único, e era um bocado solitário estar lá… Mas aprendi imensas coisas com os treinadores. E fazia imensas coisas de casa, tinha atenção à comida…
J. – Eras tu que cozinhavas?
G.A. – Não! Calma! A Mãe normalmente fazia as coisas e depois congelava, mas eu tinha que ter atenção às horas, comer bem, gerir o que fazia no dia-a-dia. Então era uma experiência diferente.
J. – E há cinco meses deixaste as Caldas da Rainha e foste para a Academia de Ténis de Espinho.
G.A. – Sim, em setembro. Nas Caldas era um bocado mais difícil, claro, porque os pais não estavam tão perto. E isso também é importante. Talvez essa tenha sido uma das razões que influenciaram mais a decisão. Mas em Espinho também tenho mais acompanhamento porque o treinador vive também dentro da Academia. E fazem-me as refeições, não sou eu que tenho que lavar a minha roupa, tenho mais ajuda… Então é um bocado mais fácil de gerir.
J. – Custa muito estar a viver longe de casa?
G.A. – Mais ou menos. No início custava mais. Agora já é como se fosse hábito, já começa a ser normal. É sempre um desafio, mas é engraçado.
J. – Tens cuidados especiais com a alimentação?
G.A. – Sim, não posso comer muitos doces, sobremesas. Normalmente a alimentação é sopa, a comida e depois, às vezes, fruta ou gelatina, dependendo. Não passa disso.
J. – E o sono?
G.A. – Não sei bem quantas horas durmo, mas é o suficiente, eu de manhã sinto-me bem. Oito horas tem que ser. Se for menos é difícil.
J. – Suponho que além de craque no ténis também sejas um craque na gestão do tempo. Não deve ser fácil conciliar tantas horas de treino com o estudo, e sem os pais por perto…
G.A. – Tem que ser. Acho que estou a conseguir fazer isso bem. Tive boas notas neste primeiro período. Às vezes tenho que ficar a estudar até um bocado mais tarde… Depois dos treinos já estou um bocado cansado, mas se eu não estudar ninguém o vai fazer [por mim], não é? É difícil, mas já estou habituado. Já consigo fazer essa gestão bem. Os Pais também sempre me ensinaram a ser responsável. Quando treinava duas horas por dia, cinco vezes por semana [ainda no Porto, no Clube de Ténis da Foz, onde esteve dos 10 aos 13 anos] já tinha que ter cuidado com a escola e com o ténis e gerir as coisas. Então acabou por ser mais ou menos normal.
J. – Qual foi o torneio mais especial em que participaste até hoje?
G.A. – O primeiro que se ganha é sempre fixe. Foi um torneio engraçado, na Marinha Grande, tinha 11 anos, joguei com o pé torcido e ganhei! E no ano passado foi a primeira vez que joguei [torneios] internacionais. Era um [torneio] super-categoria, na Maia – na Europa toda só há cinco ou seis supercategoria [o topo da competição para sub-14] e é uma sorte que um deles seja aqui em Portugal. Foi o [torneio] mais importante que joguei até hoje. De longe. Havia gente de toda a Europa. Foi uma experiência muito boa, apesar de ter perdido. Senti que o meu esforço tinha sido recompensado, porque a Federação [Portuguesa de Ténis] deu-me entrada direta para o quadro principal, o que é uma grande recompensa. Perdi na primeira ronda, mas foi com um rapaz que também jogava muito bem.
J. – Quando as coisas não correm bem e não ganhas, lidas bem com isso?
G.A. – Dantes era um bocadinho mais difícil, é normal, era mais novo. Ficava triste, às vezes ficava a chorar… Agora percebo, faz parte do processo, [sei que] tenho que trabalhar melhor, tentar dar mais sempre. Tenho conseguido mudar isso. Também tenho uma psicóloga que me ajuda muito. Aprendo a controlar melhor as emoções dentro do campo, as adversidades. E o Miguel [o treinador] também tem sido muito importante nesse aspeto. Ele diz sempre “alegria e bola dentro”. O que eu consigo tirar desta frase é que é para estarmos contentes dentro do campo, pela oportunidade de estarmos lá, e por outro lado é para treinar, fazer bem. Fazer um processo feliz, uma coisa de que gostamos, acho que é o mais importante. Depois ter o apoio da família é muito importante, claro. Tal como ter boas relações com quem nos rodeia no dia-a-dia. Tendo isto, as coisas acontecem e pronto.
J. – Do que já conseguiste fazer no ténis, de que é que te orgulhas mais?
G.A. – O que eu me orgulho mais na verdade não é dos resultados dos torneios, mas do dia-a-dia, de estar na Academia [de Ténis de Espinho], de conseguir fazer as coisas bem.
J. – E conciliar com os estudos também é importante?
G.A. – Isso acho que é a maior vitória.
J. – Onde é que tu queres chegar no mundo do ténis?
G.A. – Claro que o sonho é chegar ao patamar de um Federer ou de um Nadal, ganhar um título ATP. Tudo isso é incrível! É para isso que eu trabalho. Acho que vou conseguir. Estou confiante.
J. – Apesar de teres este sonho, também pensas ir para a Universidade?
G.A. – Essa parte dos estudos é importante, como é óbvio. A solução melhor para conciliar o ténis com a universidade é nos Estados Unidos. Pode-se estudar e jogar ao mesmo tempo. Lá os estudos são muito caros, mas há muitas bolsas. Poderia ser uma boa hipótese… Mas ainda falta um bocado para decidir. Vamos ver com os anos o que acontece. Preciso de continuar a fazer as coisas bem. Tudo depende do nível em que vou estar na altura.
J. – Que conselhos deixarias a quem queira seguir o teu percurso?
G.A. – Primeiro é preciso ter noção que é muito difícil, é preciso estar disponível para fazer [esforços] e gostar muito [do que se faz], claro! É preciso – não sei bem se é a palavra ideal – termos flexibilidade com os resultados, saber que é preciso treinar sempre mais, [saber] que também existe o outro e que, às vezes, os outros jogaram melhor. Fazer um processo bom, um processo feliz [é o mais importante].
Como é estudar à distância?
A escola em que Gil está inscrito é a Escola Secundária de Fonseca Benevides, em Lisboa. Os professores estão lá a lecionar. Os alunos é que estão longe.
Lembras-te como eram as aulas no tempo da Covid-19?! A escola que o Gil frequenta, por ser atleta federado e aspirante a jogador de ténis profissional, é mais ou menos assim. Os professores dele, no entanto, não estão em casa. Estão numa escola, em Lisboa, que tem a particularidade de ser a Escola Sede do Ensino à Distância, em Portugal (podes saber mais sobre esta modalidade de ensino aqui). Destina-se a atletas como o Gil (não só de ténis, mas de outras modalidades, como o futebol), a filhos de profissionais itinerantes (como artistas de circo) ou a crianças que, por alguma razão (de saúde, por exemplo), não podem ir à escola.
As aulas são transmitidas através do Microsoft Teams e há um horário pré-definido, como nas restantes escolas. Ali, no entanto, há a possibilidade de ter dispensa de algumas aulas. Ter um torneio, por exemplo, é uma razão para se poder faltar. “Para recuperarmos as aulas a que faltamos, os professores ou deixam tarefas ou então há uma aplicação que é o Bloco de Notas e eles deixam lá as aulas escritas”, explica Gil. Raramente têm acesso aos vídeos das aulas que foram dadas e em que não puderam estar presentes. Os testes são com hora marcada e câmara ligada (como as aulas, aliás), no Forms ou no Word. Mas se tiverem que faltar a um teste, têm depois alternativas. E contacto com os professores, existe? “Sim, os professores conseguem comunicar connosco e temos reuniões de vídeo com eles. Estão sempre a falar connosco e a ajudar-nos, então corre bem”, conta Gil, que, à distância, conseguiu manter as elevadas notas que tinha no ensino presencial.