A polícia não existe desde sempre
Se um agente de polícia viajasse no tempo e visitasse uma cidade portuguesa do século XV, por certo que pareceria aos olhos daquelas gentes um extraterrestre.
Por Adolfo Cueto-Rodríguez*
Já imaginaste um país sem polícia? De facto, existem algumas vozes que defendem precisamente isso, dentro de um debate mais amplo a volta do «abolicionismo» penal e prisional. Tal coisa, o desaparecimento da polícia, seria possível se as relações entre indivíduos fossem tão harmoniosas que dispensassem o uso de qualquer força. Nesse caso, bastaria recorrer à justiça como árbitro. Seria uma sociedade sem desigualdades, certamente, onde a insegurança viria, apenas, de fatores externos ou de catástrofes naturais. A realidade, no entanto, é muito distinta.
A Constituição da República Portuguesa reconhece a segurança como um direito. Mas há muitos tipos de segurança: física, financeira, laboral, alimentar, sanitária, ambiental, etc. Cuidar de todos eles é tarefa dos Estados; mas, nem todos os Estados do mundo têm as mesmas capacidades, nem as circunstâncias que alimentam a insegurança cidadã são iguais dentro do mesmo país ou da mesma cidade.
Entre outros instrumentos, os Estados contam com forças de polícia para garantir a segurança aos cidadãos. A verdade é que nem só para isso, mas, sobretudo, para isto. Contudo, essas polícias nem sempre foram como hoje as conhecemos, nem hoje são iguais em todos os recantos do planeta.
Cuidar da ‘coisa pública’
Estruturas ou mecanismos para a manutenção de uma determinada ‘ordem’ existiram em todas as sociedades com maior ou menor grau de complexidade. Mas os corpos de polícia profissionais, organizados hierarquicamente, com agentes dedicados a tempo inteiro e pagos pelo Estado, são uma realidade relativamente recente.
Para encontrar as origens dos atuais corpos de polícia na Europa temos que nos remeter aos séculos XVIII e XIX, precisamente quando os Estados assumiram maior poder em relação a outras instituições (a Igreja, a nobreza, organizações privadas, etc.). De facto, naquela época a palavra «polícia» significava cuidar da “coisa pública”. Dito de outra maneira, significava ação de governo em geral, e não apenas um corpo de funcionários ao serviço desse Estado.
Assim, se hoje um agente de polícia viajasse no tempo e visitasse uma cidade portuguesa do século XV, por certo que pareceria aos olhos daquelas gentes um extraterrestre pela roupa ou seria confundido com um estrangeiro pela forma de falar (ainda que ambos falassem em Português), e ainda que dissesse qual era a sua profissão, provavelmente, os portugueses do século XV não entenderiam qual era a sua ocupação.
O cabo de polícia: ser polícia à força…
Os primeiros corpos policiais modernos criados em Portugal foram as Guardas Reais de Lisboa (1801) e do Porto (1808). Eram unidades militares e só policiavam aquelas duas cidades. A segurança no resto do país estava entregue a figuras como os cabos-da-polícia, que na verdade eram indivíduos sem qualquer preparação policial, com outras ocupações principais (geralmente trabalhadores rurais). Estes homens eram nomeados contra a sua vontade ou em troca apenas de alguns benefícios, para velar pelo cumprimento das leis e pela manutenção da paz pública na área onde viviam. Ora lê o que dizia Ramalho Ortigão sobre eles:
Tenta agora imaginar por um instante que te foi atribuída esta responsabilidade – a de cabo de polícia – na tua rua ou bairro. Imagina que tinhas que perder o teu tempo e até arriscar a tua vida para evitar, por exemplo, um assalto de um bando de ladrões e que tinhas para te defender apenas uma vara. Pois, poucos eram os que queriam correr tais perigos, e muitos dos que aceitavam, tentavam não correr o risco e simplesmente afastavam-se de qualquer «incidente», talvez alegando que não tinham sabido de nada.
Quando os problemas se tornavam maiores era o Exército que intervinha, e, como podes imaginar, nem os métodos nem as armas eram os mais apropriados. Acredito que não irias gostar de estar envolvido numa alteração da ordem pública onde o Exército fosse chamado a intervir.
A chegada das mulheres
O Estado liberal, implantado em Portugal de forma definitiva em 1834, desejava ter um corpo de polícia civil com abrangência nacional, mas isso era muito caro. Por esta razão foi preciso esperar até 1867 para que fossem criadas as duas primeiras unidades deste tipo: as polícias civis de Lisboa e do Porto. A modernidade policial chegava, por fim, a Portugal, mas só nestas duas cidades. A criação dos corpos de polícia das restantes capitais distritais (só nas capitais) alastrar-se-ia durante décadas, e no campo teremos de esperar até 1911 para que chegasse uma força policial!
Contudo, estes novos funcionários não eram profissionais como os atuais. Apenas se lhes exigia saberem ler, escrever, contar, e medir mais de 1,56 m. Inicialmente também não existia uma formação para os preparar para o serviço. Tanto é assim, que os lojistas de Lisboa, que deviam beneficiar da presença da polícia nas ruas, foram obrigados a organizar-se para se defender dela! Alegavam que os guardas denunciavam e multavam sem fundamento. Há que dizer que em 1890 perto do 75% da população portuguesa era analfabeta, e, sim, também bastante mais baixa do que é hoje por causa da má alimentação.
As mulheres estiveram durante décadas excluídas da polícia. As primeiras foram admitidas em 1922 e só para guardar reclusas e crianças. A adesão maior aconteceu em 1972 e ainda para cumprir funções restringidas, pois persistiam várias resistências em reconhecer-lhes aptidões para o serviço. A experiência demonstrou que tais resistências não passavam de puro preconceito.
Rumo à especialização
A partir dos últimos anos do século XIX as polícias foram especializando-se. Originariamente as polícias civis (1867) cumpriam todas as funções: ronda pelas ruas, socorro, detenções de malfeitores, investigação de crimes (incluindo prevenção de maus tratos a animais – recorde-se que neste tempo os veículos de tração animal eram dominantes), a perseguição a mendigos (não se considerava, como hoje, a mendicidade como problema social: era um problema de ordem pública). Surgiram assim a Polícia de Segurança Pública (segurança corrente) e a Polícia Judiciaria (investigação de crimes), a Guarda Nacional Republicana (segurança nas zonas rurais); mas também as polícias políticas, entre elas a conhecida Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que perseguiam os cidadãos por questões de pensamento e opinião.
Hoje a Constituição Portuguesa impede que possam existir polícias deste último tipo. As restantes são forças nacionais, democráticas, que devem preservar e respeitar acima de tudo os direitos dos cidadãos. Para isso os candidatos a agentes e chefias, mulheres e homens, passam por um processo de seleção e formação apuradíssimo, sendo fiscalizados para evitar situações de abuso. Numa sociedade de Direito, onde a ação da polícia ainda não é dispensável, é fundamental que todas as forças policiais respeitem os princípios da Democracia.
(*) Este artigo foi escrito no âmbito da parceria entre o Laboratório de História, Territórios e Comunidades – CFE NOVA FCSH (https://htc.fcsh.unl.pt) e o Jornalíssimo, com coordenação de Maria Fernanda Rollo.